Foi direto ao coração do inimigo. Planejou a execução dos cabeças das cinco Famílias, numa grande manobra tática. Para atingi-los, pôs em execução um rigoroso sistema de vigilância dos líderes adversários. Uma semana após, os chefes inimigos prontamente mergulharam no subterrâneo e não foram mais vistos em público.
As cinco Famílias e o Império Corleone estavam num impasse.
CAPÍTULO 18
AMERIGO BONASERA morava apenas a alguns quarteirões de seu estabelecimento funerário na Rua Mulberry e assim sempre ia cear em casa. À noite, costumava voltar à sua empresa comercial a fim de unir-se respeitosamente às pessoas enlutadas que prestavam sua homenagem ao morto que jazia em câmara-ardente em suas salas sombrias.
Ele sempre se ofendia com as piadas ditas a respeito de sua profissão, os detalhes técnicos macabros que eram tão insignificantes. Evidentemente, nenhum de seus amigos, membros de sua família ou vizinhos diria tais piadas. Qualquer profissão era digna de respeito para os homens que durante séculos haviam ganho o seu pão com o suor de seu rosto.
Agora, ceando com sua mulher em seu apartamento bem mobiliado, com imagens douradas da Virgem Maria com suas velas de vidro vermelho bruxuleando no aparador, Bonasera acendeu um cigarro Camel e tomou um repousante copo de uísque americano. A mulher trouxe pratos fumegantes de sopa para a mesa. Os dois estavam sós agora; ele mandara a filha morar em Boston com a avó, onde ela poderia esquecer a sua terrível experiência e os maus-tratos que sofrera dos dois salafrários que Don Corleone havia punido.
Enquanto tomavam a sopa, a mulher perguntou:
— Você vai voltar para o trabalho esta noite?
Amerigo Bonasera acenou afirmativamente com a cabeça. A mulher respeitava o trabalho dele, mas não o compreendia. Não compreendia que a parte técnica de sua profissão fosse a menos importante. Ele pensava, como muitas outras pessoas, que era pago por sua habilidade em fazer o morto parecer tão vivo em seu caixão. E, na verdade, essa sua habilidade era lendária. Porém mais importante ainda, mais necessária ainda, era sua presença física no velório. Quando a família desolada vinha à noite receber os demais parentes e amigos junto ao ataúde do pranteado morto, precisava de Amerigo Bonasera em companhia dela.
Pois ele era um guia rigoroso para a morte. Com seu rosto sempre sério, embora forte e confortador, sua voz firme, conquanto abafada para um registro baixo, ele comandava o rito fúnebre. Podia acalmar a dor que era tão indecorosa, podia repreender as crianças turbulentas cujos pais não tinham coragem de castigá-las. Incansável no oferecimento de suas condolências, ele jamais era rude. Uma vez que uma família usasse Amerigo Bonasera para despachar um morto, voltava repetidamente a usar os seus serviços. E ele nunca, nunca abandonava um de seus clientes nessa terrível derradeira noite sobre a terra.
Geralmente Bonasera permitia-se uma soneca após a ceia. Depois lavava-se e barbeava-se, usando talco com abundância para disfarçar a barba preta cerrada. Lavava sempre a boca. Respeitosamente vestia uma roupa de baixo limpa, uma camisa branca lustrosa, a gravata preta, uma roupa escura recém-passada a ferro, sapatos pretos foscos e meias pretas. Contudo, a impressão que ele causava era confortante em lugar de sombria. Também conservava o cabelo tingido de preto, uma frivolidade inaudita num homem italiano de sua geração; mas não era por vaidade. Simplesmente porque o seu cabelo havia tomado um aspecto vivo de sal e pimenta, uma cor que lhe parecia indecorosa para a sua profissão.
Depois que Bonasera acabou a sopa, a mulher pôs diante dele um pequeno bife com algumas garfadas de espinafre verde ressumbrando óleo amarelo. Ele comia pouco. Quando terminou, tomou uma xícara de café e fumou outro cigarro Camel. Enquanto tomava café, pensou na sua pobre filha. Ela nunca mais seria a mesma. Sua beleza externa havia sido restaurada, mas ele percebia nela o olhar de um animal assustado que o tornava incapaz de encará-la. E assim mandaram-na passar algum tempo em Boston. O tempo curaria as feridas da moça. A dor e o terror não eram coisas tão finais como a morte, como ele bem sabia. Seu trabalho o fizera otimista.
Bonasera acabara de tomar o café quando o telefone da sala de estar tocou. A mulher nunca atendia quando ele estava em casa, assim ele se levantou, esvaziou a xícara e apagou o cigarro. Enquanto caminhava para o telefone, tirou a gravata e começou a desabotoar a camisa, aprontando-se para a sua soneca. Em seguida, pegou o telefone e disse com uma cortesia tranqüila:
— Alô.
A voz do outro lado era áspera. forçada.
— Aqui é Tom Hagen. Estou falando em nome de Don Corleone, a pedido dele.
Amerigo Bonasera sentiu o café agitar-se amargamente em seu estômago, sentiu-se possuído de um certo mal-estar. Havia mais de um ano que ele contraíra uma dívida com Don Corleone para vingar a honra de sua filha e nessa altura a lembrança de que ele tinha de pagar essa dívida estava muito longe. Ficara tão grato ao ver o rosto ensangüentado daqueles dois salafrários que faria tudo por Don Corleone. Mas o tempo desgasta a gratidão mais depressa do que a beleza. Agora Bonasera sentia a doença de um homem que enfrentava uma desgraça. A sua voz gaguejou quando ele respondeu:
— Sim, compreendo. Estou ouvindo.
Ele estava surpreso com a frieza da voz de Hagen. O consigliori sempre fora um homem cortês, embora não sendo italiano, mas agora se mostrava rudemente brusco.
— Você deve um serviço ao Don — disse Hagen. — Ele não tem dúvida de que você lhe pagará. De que você será feliz em ter esta oportunidade. Dentro de uma hora, não antes, talvez depois, ele estará em sua empresa funerária para lhe pedir um favor. Esteja lá para recebê-lo. Não tenha lá ninguém que trabalhe para você. Mande todo mundo embora. Se você não tem qualquer objeção a fazer, fale agora e eu informarei Don Corleone. Ele tem outros amigos que podem fazer esse serviço.
Amerigo Bonasera quase gritou em seu susto:
— Como pode você pensar que eu faltaria ao Padrinho? Certamente, farei tudo o que ele deseja. Não esqueci minha dívida. Irei para a minha empresa imediatamente, agora mesmo.
A voz de Hagen era mais delicada agora, mas havia algo estranho nela.
— Muito obrigado — respondeu ele. — O Don nunca teve dúvidas a seu respeito. A dúvida era minha. Atenda-o esta noite e você poderá me procurar sempre que tiver dificuldades, você ganhará a minha amizade pessoal.
Isso assustou Amerigo Bonasera ainda mais. Ele gaguejou:
— O próprio Don vai-me procurar esta noite?
— Sim — respondeu Hagen.
— Então ele está completamente restabelecido dos ferimentos, graças a Deus — disse Bonasera. A sua voz estava como que perguntando.
Houve uma pausa do outro lado do telefone, depois a voz de Hagen falou muito tranqüilamente:
— Sim.
Houve um pequeno estalo e o telefone emudeceu.
Bonasera estava suando. Foi para o quarto, mudou a camisa e lavou a boca. Mas não fez a barba nem mudou a gravata. Pôs a mesma que usara durante o dia. Telefonou para a empresa funerária e pediu ao ajudante que ficasse com a família desolada usando a sala da frente naquela noite. Ele próprio estaria ocupado na sala do laboratório da empresa. Quando o ajudante começou a fazer perguntas, Bonasera cortou-lhe a fala laconicamente e disse-lhe para seguir exatamente as ordens.
Em seguida, vestiu o paletó, e sua mulher, ainda comendo, levantou os olhos para ele com surpresa.
— Tenho um trabalho a fazer — comunicou, e ela não se atreveu a interrogá-lo devido ao aspecto estampado no rosto do marido.