SIDNEY SHELDON
O PREÇO DO PODER
Título original; MASTER OF THE GAME
Tradução de: EDUARDO SALÓ
Impresso e encadernado por Printer Portuguesa. Ind. (Gráfica. no mês de Fevereiro de 1984 Número de edição: 1352 Segunda edição: 2000 exemplares Depósito legal número 3879 84 Só é permitida a venda aos Sócios do Círculo de Leitores
A meu irmão Richard, Coração de Leão A minha gratidão vai para Miss Geraldine Hunter, pela sua paciência infinita e auxílio na preparação deste manuscrito.
“E eis que uma paixão dominante no peito, Como a serpente de Aarão, devora o resto.”
Papa Alexandre,
Ensaio sobre o Homem, Epístola II “Os diamantes resistem às pancadas numa tal extensão que um martelo de ferro se pode partir em dois e até a bigorna se pode deslocar. Esta força invencível, que desafia as duas forças mais violentas da Natureza, o ferro e o fogo, pode dominar-se com sangue de cordeiro. Mas deve embeber-se em sangue novo e quente e, mesmo assim, são necessárias muitas pancadas.”
Plínio, o Antigo
PRÓLOGO
Kate 1982 O vasto salão de baile estava cheio de fantasmas familiares que tinham acudido para ajudar a celebrar o aniversário dela. Kate Blackwe ll via-os misturarem-se com as pessoas de carne e osso e, no seu espírito, a cena constituía uma fantasia de sonho, enquanto os visitantes de outra época e lugar deslizavam em torno da área de dança com os convidados, despreocupados, de gravata preta e vaporosos vestidos de noite. Havia uma centena de pessoas na festa em Cedar Hill, Dark Harbor, Maine. “Sem contar com os fantasmas”, reflectia Kate Blackwell, com uma ponta de malícia.
Era uma mulher esguia, de estatura mediana e porte majestoso, que a fazia parecer mais alta. Possuía um rosto que perdurava na memória das pessoas com as quais convivia: traços faciais irrepreensíveis, olhos cinzento-alvorada e queixo voluntarioso, fusão de antepassados holandeses e escoceses. Tinha cabelos brancos, acetinados, que outrora deviam ter sido uma cascata negra exuberante, e, em contraste com as pregas graciosas do vestido de veludo-marfim, a pele apresentava a translucidez suave que a velhice por vezes proporciona.
“Não me sinto com noventa”, pensava ela. “Para onde foram todos os anos? Eles sabem”, prosseguiu, contemplando os fantasmas que dançavam. “Estavam presentes. Fizeram parte daqueles anos, da minha vida.” Avistou Banda, o rosto negro altivo e sorridente. E lá estava também o seu David, o David querido, alto, jovem e bem-parecido, com o aspecto que tinha quando se enamorara dele. Ao vê-lo sorrir-lhe, ela pensou: “Já falta pouco, meu amor!” E deplorava que não tivesse vivido o suficiente para conhecer o bisneto.
Os olhos de Kate esquadrinharam o salão até que o localizaram. Encontrava-se perto da orquestra, entretido a observar os músicos. Era um garoto, que se podia considerar bonito, quase com oito anos, cabelos louros, envergando casaco de veludo preto e calça de tartã. Robert era uma réplica do trisavô, Jamie McGregor, que se achava representado na tela por cima da lareira de mármore. Como se pressentisse os olhos da bisavó pousados nele, Robert voltou-se e Kate chamou-o com um movimento ondulatório dos dedos, em que cintilava o diamante de vinte quilates que o pai retirara de uma praia arenosa, havia quase cem anos, agora realçado pelo clarão do candelabro de cristal. Enquanto o petiz abria caminho por entre os pares de dançarinos, ela observava-o com prazer.
“Sou o passado”, admitia para consigo. “Ele é o futuro. O meu bisneto assumirá, um dia, a direcção da Kruger-Brent International.” Por fim, Robert encontrou-se a seu lado e Kate desviou-se um pouco para que ele pudesse sentar-se.
- Estás a gostar da tua festa de aniversário, bisavó?
- Muito. Obrigada, Robert.
- É uma orquestra formidável. Acho o chefe mesmo “mau”…
Ela olhou-o em confusão momentânea e acabou por sorrir.
- Isso deve querer dizer que é bom.
- Exacto - e o garoto sorriu igualmente. - Ninguém te dá noventa anos.
- Aqui para nós - replicou Kate, com uma risada -, não os sinto.
Ele pegou-lhe na mão e conservaram-se imersos em silêncio de felicidade, em que a diferença de oitenta e dois anos nas idades lhes proporcionava uma afinidade reconfortante. Kate moveu a cabeça para ver a neta dançar. Ela e o marido eram, sem dúvida, o par mais atraente que se movia ao ritmo da orquestra.
A mãe de Robert viu este e sua avó sentados juntos e pensou: “É uma mulher incrível. Parece intemporal. Ninguém diria as vicissitudes que conheceu.”
A orquestra interrompeu a actuação e o chefe anunciou:
- Minhas senhoras e meus senhores, tenho o prazer de lhes apresentar o menino Robert.
Este apertou a mão da bisavó, levantou-se e aproximou-se do piano. Após breve hesitação, sentou-se de expressão grave e concentrada, e os dedos principiaram a mover-se rapidamente no teclado. Tocava Scriabin e dir-se-ia o ondular do luar na água.
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A mãe escutava e reflectia: “É um génio. Há-de tornar-se um grande músico.” Já não era o seu bebé. Pertenceria ao mundo. Quando Robert chegou ao fim, os aplausos foram entusiásticos e sinceros.
Algumas horas antes, o jantar fora servido ao ar livre. O jardim espaçoso e formal apresentava uma decoração festiva, com lanternas, fitas e balões. Os músicos tocavam no terraço, enquanto empregados de libré se moviam em torno das mesas, silenciosos e eficientes, para se certificarem de que os copos de Baccarat e os pratos de Limoges se mantinham cheios. Foi lido um telegrama do presidente dos Estados Unidos. Um juiz do Supremo Tribunal propôs um brinde a Kate.
O governador enalteceu-a: “…Uma das mulheres mais notáveis da história desta nação. Os donativos de Kate Black-well a centenas de instituições de caridade de todo o mundo são lendários. A Fundação Blackwell contribuiu para a saúde e o bem-estar de pessoas de mais cinquenta países. Parafraseando o falecido Winston Churchill, "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos." Tive o privilégio de conhecer Kate Blackwell…”
“Lérias!”, cogitava Kate. “Ninguém me conhece. O fulano parece que se refere a uma santa. Que diria toda esta gente se conhecesse a verdadeira Kate Blackwell?
Concebida por um ladrão e raptada quando ainda não tinha um ano de idade. Que pensariam se lhes mostrasse as cicatrizes de balas no meu corpo?”
Moveu a cabeça e fixou o olhar no homem que outrora tentara matá-la. Os seus olhos deslocaram-se para além dele e cravaram-se num vulto na sombra, que usava véu para encobrir o rosto. Tendo um trovão distante como contraponto, Kate ouviu o governador terminar a alocução e apresentá-la. Ela levantou-se com lentidão e, em voz firme e grave, proferiu:
- Vivi mais que qualquer dos presentes. Como diria um jovem de hoje, “grande avaria!”. No entanto, alegra-me ter chegado a esta idade, porque de contrário não estaria entre tantos amigos. Sei que alguns de vós vieram de países distantes para se encontrarem junto de mim, esta noite, e devem sentir-se fatigados da viagem. Não posso esperar que todos possuam a minha energia.
Registou-se uma gargalhada geral e aplausos.
- Estou-lhes profundamente grata por este memorável
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serão. Jamais o esquecerei. Os aposentos encontram-se preparados, se alguém deseja ir descansar. Quanto aos outros, segue-se baile no salão.
Soou novo trovão, agora mais próximo.
- Sugiro que entremos, antes que sejamos surpreendidos por uma das nossas famosas tormentas do Maine.
Agora, o jantar e o baile tinham terminado, os convidados achavam-se nos quartos e Kate ficara só com os seus fantasmas. Estava sentada na biblioteca, mergulhada gradualmente no passado, e, de súbito, sentiu-se deprimida. “Já não há ninguém para me chamar Kate. Partiram todos.” O seu mundo mirrara. Não fora Longfellow quem dissera: “As folhas das recordações produzem um sussurro lúgubre nas trevas”? Ela penetraria nas trevas dentro em breve, mas não imediatamente. “Ainda tenho de executar o acto mais importante da minha vida.