ter feito entender. “O mesmo se passa connosco, os
historiadores. Somos uma espécie de detectives do
passado. Mas é importante que perceba que, quando
estudamos uma grande figura da história, por vezes
descobrimos
coisas
que
os
seus
admiradores
incondicionais talvez não gostassem de saber. Coisas
que
podem
ser...
desagradáveis,
entende?
Porém,
verdadeiras.”
Fez uma pausa para se assegurar de que este ponto tinha
sido perfeitamente assimilado.
“E então?”, impacientou-se Valentina.
“E então preciso de saber se me quer escutar até ao
fim, sabendo que vou dizer algumas coisas sobre Jesus e
a Bíblia que poderão mexer profundamente com as suas
convicções religiosas. Não quero que se zangue comigo a
cada revelação que lhe faça. Se é para isso, mais vale
eu ficar calado.”
“Essas coisas que me pode revelar... de certeza que são
verdadeiras?”
Tomás fez que sim com a cabeça.
“Tanto quanto podemos determinar, sim.” Esboçou um
sorriso
sem
humor.
“Chamemos-lhes...
verdades
inconvenientes.”
“Então, força com isso.”
O historiador perscrutou-a com cuidado, como se
duvidasse da sinceridade do que acabara de escutar.
“De certeza? Não me vai prender no fim?”
A pergunta teve o condão de quebrar o gelo no rosto de
Valentina.
“Não sabia que tinha medo de mulheres”, sorriu.
Tomás riu-se.
“Só das lindíssimas.”
“Ah, pois. Já cá faltavam os galanteios”, repreendeu-o
a italiana, corando. Antes que ele pudesse retorquir,
porém, Valentina voltou a pousar a mão no Codex
Vaticanus, reencaminhando mais uma vez a conversa.
“Então diga lá. Que erros são esses que constam da
Bíblia?”
O historiador fez-lhe sinal de que se sentasse e ele
próprio se acomodou à mesa de leitura, junto ao célebre
códice do século IV. Tamborilou os dedos na madeira
envernizada da mesa, tentando decidir por onde começar;
havia tanta coisa para dizer que a dificuldade era
justamente estabelecer o roteiro da conversa.
Por fim ergueu os olhos e fitou-a.
“Por que razão é cristã?”
A inspectora foi apanhada de surpresa.
“Bem...”, titubeou a italiana, “é uma questão de...
enfim, a minha família é católica, cresci com essa
educação e... e sou também católica. Porque quer saber
isso?”
“Está a dizer-me que é cristã meramente por tradição
familiar?”
“Não... quer dizer, claro que a tradição conta. Mas
acredito nos valores cristãos, acredito no que Jesus
nos ensinou. É isso que faz de mim uma cristã.”
“E quais são os ensinamentos de Jesus que mais
valoriza?” “O amor e o perdão, sem dúvida.”
Tomás deitou um olhar ao Codex Vaticanus, testemunha
silenciosa daquela conversa.
“Conte-me um episódio do Novo Testamento que considere
mais emblemático desses ensinamentos.”
“Ah, a história da adúltera”, disse Valentina sem
hesitar. “A minha avó falava-me muito nessa história,
era a sua favorita. Presumo que a conheça bem, não?”
“Quem não a conhece? Se exceptuarmos as narrativas do
nascimento e da crucificação de Jesus, esse é o
episódio mais famoso do Novo Testamento.” Recostou-se
na cadeira, como se se preparasse para assistir a um
espectáculo. “Mas diga-me lá: o que sabe sobre a
história da adúltera?”
O pedido voltou a atrapalhar a italiana.
“Sei o que toda a gente sabe, acho eu”, disse. “A lei
judaica prevê que os adúlteros sejam apedrejados até à
morte, não é verdade? Acontece que certa vez os
fariseus foram ter com Jesus e levaram-lhe uma mulher
que tinha sido apanhada em adultério. Queriam testar o
respeito de Jesus pela lei de Deus. Os fariseus
lembraram-lhe que a lei que Deus entregou a Moisés
previa a lapidação da adúltera...”
“É o que diz a Bíblia”, atalhou Tomás. “Em Levítico,
20:10, Deus diz a Moisés: ‘Se um homem cometer
adultério com a mulher de outro homem, com a mulher do
seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos
com a morte.’ ”
“Pois”, assentiu Valentina. “Os fariseus conheciam,
claro, essa ordem de Deus, mas pretendiam primeiro
saber o que tinha Jesus a dizer sobre o assunto.
Deveriam apedrejá-la até à morte, como requeria a lei,
ou deveriam conceder-lhe o perdão, como Jesus andava a
pregar? Esta pergunta era evidentemente um ardil, uma
vez que, se recomendasse a lapidação, Jesus estaria a
contradizer tudo o que ensinara sobre o amor e o
perdão. Mas se a libertasse estaria a violar a lei de
Deus. O que fazer?”
“Toda a gente conhece a resposta a esse dilema”, sorriu
o historiador. “Sem levantar a cabeça, e sempre a
rabiscar coisas na areia, Jesus disse-lhes que atirasse
a primeira pedra quem nunca tivesse pecado. Os fariseus
ficaram atrapalhados, porque evidentemente todos eles
já haviam cometido pecados, mesmo que mínimos, e foram-
se embora, deixando a adúltera com Jesus. Quando ficou
a sós com ela, Jesus mandou-a também embora, dizendo-
lhe: ‘Vai e doravante não tornes a pecar.”’
Os olhos de Valentina brilhavam.
“Não acha brilhante?”, perguntou ela. “De uma penada,
Jesus impossibilitou a aplicação de uma lei cruel sem a
revogar. É de génio, não é?”
“A história é lindíssima”, concordou Tomás. “Tem drama,
tem conflito, tem tragédia e, no momento do clímax,
quando a tensão atinge o apogeu e Jesus e a adúltera
parecem perdidos, ela destinada à morte à pedrada e ele
ao escárnio dos fariseus, apresenta-nos uma resolução
surpreendente e maravilhosa, cheia de humanidade,
compaixão, perdão e amor. Basta escutar esse episódio
maravilhoso para perceber a grandeza de Jesus e dos
seus ensinamentos.” Fez uma careta e ergueu um dedo,
interrompendo assim o fluxo das suas palavras. “Só há
um pequenino problema.”
“Problema? Qual problema?”
O historiador assentou os dois cotovelos na mesa,
apoiou o queixo nas mãos e fitou intensamente a sua
interlocutora. “Isso nunca aconteceu.”
“Como?!”
Tomás suspirou.
“A história da adúltera, minha cara, é forjada.”
VII
A iluminação nocturna que beijava as paredes exteriores
do Castelo de Dublin conferia às muralhas um certo
aspecto fantasmagórico, como se os postes fossem
sentinelas a vigiar um vulto adormecido no meio da