cidade. Um manto denso de neblina abatera-se sobre o
casario, parecia que um véu de prata havia tombado na
noite, e os candeeiros exalavam um halo amarelado de
luz que projectava estranhas sombras sobre os passeios
e as fachadas de tijolos dos edifícios.
Logo que o táxi se afastou, Sicarius pôs-se a
esquadrinhar as ruas em torno do castelo, em busca do
seu destino. Depressa percebeu, contudo, que a Chester
Beatty Library não era tão simples de localizar como
inicialmente supusera. Verificou no mapa, onde tudo se
lhe afigurava claro, mas o formato real das ruas
pareceu-lhe diferente e ficou confuso. Acabou por se
deparar com umas tabuletas que o conduziram aos Dubh
Linn Gardens e por fim à entrada da biblioteca.
O edifício deixou-o algo desconcertado. Esperava um
monumento imponente, à altura dos tesouros de valor
incalculável que albergava nos seus cofres, mas
encontrou algo diferente. Considerando o ambiente
histórico que a rodeava, a Chester Beatty Library
encontrava-se alojada num edifício surpreendentemente
moderno, ao lado do oitocentista Clock Tower Building.
Observou durante algum tempo a grande porta envidraçada
da entrada e todo o espaço em redor. Apenas se
apercebeu de um sem-abrigo a dormir no jardim com uma
garrafa de whisky ao lado; não era uma ameaça. Já com a
certeza de que ali não circulava ninguém que o pudesse
importunar, aproximou-se com cautela.
A porta estava fechada, como era natural àquela hora da
madrugada, mas o visitante apercebeu-se de luzes acesas
no interior do edifício. Teria de haver pelo menos um
guarda, claro. Talvez mais. O importante, porém, era o
visitante que, segundo o mestre, ali se encontrava.
O alvo.
Sicarius colou o rosto ao vidro da porta. Apercebeu-se
de que havia um guarda a dormitar por detrás de um
balcão circular. Estudou o dispositivo de alarme
instalado no interior do edifício. Percebeu que não
seria fácil entrar ali. O ideal seria contar com a
colaboração de um cúmplice, como acontecera no Vaticano
graças aos contactos do mestre, mas em Dublin estava
por sua conta e risco. Voltou a analisar o dispositivo
de alarme. Havia luzes vermelhas a piscar e câmaras de
vídeo instaladas em pontos estratégicos nas paredes.
Sem ajuda nem planificação atempada, parecia-lhe quase
impossível entrar na biblioteca sem ser detectado.
Teria de improvisar.
Como o acesso frontal lhe estava vedado, avaliou a
possibilidade de penetrar por uma das janelas.
Situavam-se num plano um pouco elevado, mas à primeira
vista pareciam-lhe acessíveis. Estudou-as da rua e
ponderou avançar, mas acabou igualmente por se
convencer de que, sem um trabalho adequado de
preparação, os riscos de a sua intrusão por aí ser
detectada eram também consideráveis.
Convencido em definitivo de que não estavam reunidas as
condições para ser bem sucedido, decidiu não tentar
penetrar na Chester Beatty Library. Em vez disso
procurou um canto recatado junto à entrada da
biblioteca e instalou-se aí; o local parecia-lhe
perfeito, ao abrigo de quaisquer olhares indiscretos.
Calçou as luvas negras e ultimou os preparativos.
Depois pressionou a fechadura da sua pequena mala de
couro negro e, com um clique surdo, abriu-a. O interior
da maleta era de uma treva impenetrável, mas no meio
daquela sombra cerrada um reflexo límpido cintilou,
como o faiscar de um diamante; tratava-se da luz dos
faróis de um automóvel que passara na rua e se
reflectira na lâmina cristalina.
Extraiu a adaga com um movimento delicado e sentiu-lhe
o peso milenar. Era perfeita. Depois atirou um olhar
para a entrada da biblioteca e delineou o plano. Para
que as coisas acontecessem, só lhe faltava que o alvo
desse sinais de vida.
Ele se encarregaria de os transformar em morte.
VIII
“Forjada?”
A face de Valentina quase se contorcia, desfigurada por
um misto de espanto e de indignação; o que acabara de
ouvir sobre a história da adúltera, de longe a sua
favorita da Bíblia, deixara-a em estado de choque.
Tomás percebeu a estupefacção e respirou fundo, odiando
ser o mensageiro daquela notícia.
“Receio bem que sim.”
A italiana estava boquiaberta e perscrutava o rosto do
historiador em busca de sinais de que tudo aquilo não
passava de uma brincadeira de mau gosto. Não os
encontrou.
“Como, forjada?”, questionou, num tom intensamente
incrédulo. “Oiça, não basta dizer uma coisa dessas para
que eu acredite. Para o afirmar é preciso provar!” Deu
uma palmada furiosa na mesa de leitura. “Provar,
ouviu?”
O académico português deitou os olhos ao manuscrito
silencioso que se encontrava sobre a mesa de leitura,
como se o Codex Vaticanus o pudesse ajudar a aplacar a
fúria que fervia dentro dela.
“Se quer a prova, primeiro precisa de entender algumas
coisas”, disse num registo sereno. “Para começar,
quantos textos não cristãos do século I existem a
relatar a vida de Jesus?”
“Muitos, claro!”, exclamou Valentina. “Jesus foi só o
homem mais importante dos últimos dois mil anos, não é
verdade? Não era possível ignorá-lo!...”
“Mas que textos são esses?”
“Todas as coisas que os Romanos escreveram.”
“Que coisas?”
A inspectora atrapalhou-se.
“Bem... sei lá! Você é que é o historiador...”
Tomás desenhou um círculo com o polegar e o indicador e
ergueu-o ao nível dos olhos da sua interlocutora.
“Zero.”
“Perdão?”
“Não há um único texto romano do século I sobre Jesus.
Nem manuscritos, nem documentos administrativos, nem
certidões de nascimento ou de óbito, nem vestígios
arqueológicos, nem alusões de passagem, nem referências
crípticas. Nada. Sabe o que os Romanos do século I
tinham a dizer sobre Jesus?” Voltou a desenhar o
círculo com os dedos. “Um grandessíssimo zero!”
“Não pode ser!”
“A primeira referência de um romano a Jesus foi feita
já no século II, por Plínio, o Jovem, numa carta ao
imperador Trajano, na qual menciona a seita dos
cristãos e diz que eles ‘veneram Cristo como um deus’.
Antes de Plínio, o silêncio é absoluto. Há, porém, um
historiador judeu, Josefo, que num livro sobre a
história dos judeus escrito no ano 90 menciona Jesus de
passagem. De resto, é um deserto. Significa isto que as
únicas fontes de que dispomos sobre a vida de Jesus são
as cristãs.”