“Não fazia a mínima ideia!...”
O historiador pousou os olhos no Codex Vaticanus.
“E sabe que textos fazem parte do Novo Testamento?”
Valentina ainda vacilou, tentando perceber se o seu
interlocutor não estaria a desviar a conversa. Acabou
por lhe conceder o benefício da dúvida e, fazendo um
esforço para controlar as emoções, decidiu colaborar.
Respirou fundo e buscou na mente resposta à pergunta.
“Bem, confesso que nunca prestei grande atenção a
isso”, admitiu, fazendo um ar pensativo. “Deixe ver,
são os quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e
João.” Hesitou. “E acho que há mais umas coisinhas, não
há?”
“Há pois”, riu-se Tomás. “Na verdade, os textos mais
antigos do Novo Testamento não são os Evangelhos. São
as Epístolas de Paulo.”
“A sério?”
“Sim, as cartas de Paulo”, repetiu o português,
clarificando o significado da palavra epístolas. “Sabe,
para perceber como nasceram os textos do Novo
Testamento é preciso ter presente que os primeiros
cristãos consideravam que a Bíblia era exclusivamente
constituída pelo Antigo Testamento dos judeus. O
problema era como interpretar as Sagradas Escrituras à
luz dos ensinamentos de Jesus, uma vez que os
diferentes ramos dos seus seguidores estavam a escolher
caminhos diversos, por vezes até contraditórios, e
invocavam sempre o Messias para legitimar as suas
posições. O líder de um desses ramos era Paulo, um
judeu muito activo na propagação da palavra de Jesus e
que, por isso mesmo, fez inúmeras viagens a cidades
distantes em todo o Mediterrâneo oriental para
converter pagãos. Dizia-lhes que só se devia adorar o
Deus judaico e que Jesus morreu pelos pecados do mundo
e voltaria em breve para o dia do juízo final. Acontece
que, quando ia a meio dessas viagens, chegavam-lhe por
vezes notícias de que os fiéis de uma congregação que
havia fundado estavam a adoptar uma teologia da qual
ele discordava, ou então de que havia nessa congregação
comportamentos imorais, ou qualquer outro problema.
Para voltar a pôr os crentes no que achava ser a
verdadeira senda, Paulo escreveu-lhes cartas, chamadas
epístolas, carregadas de admoestações por se terem
desviado do caminho e de exortações a regressarem ao
rumo que ele considerava correcto. A primeira dessas
cartas que sobreviveu foi dirigida à congregação de
Tessalónica, chamada Primeira Carta aos Tessalonicenses
e redigida em 49, menos de vinte anos após a morte de
Jesus. Há também uma carta que endereçou à congregação
de Roma, a chamada Carta aos Romanos, outras à
congregação de Corinto, chamadas Cartas aos Coríntios,
e assim sucessivamente. É importante perceber que,
quando
foram
escritas,
essas
epístolas
não
se
destinavam a ser encaradas como Sagradas Escrituras —
eram simples cartas.”
“Como os e-mails que trocamos hoje em dia?”
Tomás riu-se.
“Isso, só que usando um correio um pouco mais lento”,
gracejou. “Acontece que naquele tempo as pessoas eram
em geral analfabetas, pelo que estas epístolas acabavam
por ser lidas em voz alta a toda a congregação. O
próprio Paulo termina a sua Primeira Carta aos
Tessalonicenses a apelar a que a missiva «seja lida a
todos os irmãos», o que demonstra que essa era a
prática comum. Com o tempo, e após sucessivas cópias e
muitas leituras em voz alta, estas epístolas passaram a
ser consideradas uma referência e de certo modo
começaram a constituir um elo comum entre todas as
congregações. Ao todo, o Novo Testamento é constituído
por vinte e uma epístolas, de Paulo e de outros
líderes, como Pedro, Tiago, João e Judas, mas sabemos
que foram escritas muitas mais cartas que não
sobreviveram.” Valentina deitou um olhar curioso ao
Codex, Vaticanus, como se se tratasse da Bíblia
original.
“E os Evangelhos? Surgiram também em cartas?”
“A história dos Evangelhos é diferente.” Tomás indicou
a cruz de prata que a italiana trazia discretamente ao
pescoço. “Inicia-se com a crucificação de Jesus.
Receando ser mortos pelos Romanos, os seus seguidores
fugiram e esconderam-se. Depois surgiu a história da
ressurreição e eles começaram a dizer que Jesus em
breve voltaria à Terra para o dia do juízo final. Por
isso instalaram-se em Jerusalém e ficaram à espera.
Enquanto aguardavam, puseram-se a contar histórias de
Jesus.”
“Ah!”, exclamou a inspectora. “E foi assim que os
Evangelhos foram escritos.”
“Não, de modo nenhum! Os apóstolos achavam que o
regresso de Jesus estava iminente e não viam o menor
motivo para pôr essas histórias por escrito. Para quê?
Em breve Jesus voltaria! Além do mais, é importante
lembrar que os primeiros seguidores de Jesus eram gente
pobre e sem educação. Logo, analfabetos. Como iriam
eles redigir as narrativas? O que havia portanto eram
histórias avulsas e que os historiadores designam
‘perícopas orais’.”
“Foi desse modo que se preservaram as narrativas da
vida de Jesus?”
“Sim, mas não com a intenção de as preservar”, insistiu
Tomás. “Lembre-se que para eles Jesus estava prestes a
voltar.
Eles contavam essas histórias apenas para ilustrar
situações que poderiam dar a solução para os novos
problemas que entretanto iam surgindo. Este pormenor é
importante,
porque
indicia
que
estes
narradores
retiravam as histórias do contexto próprio e lhes davam
um
novo
contexto,
alterando
assim
subtil
e
inconscientemente o seu sentido. O problema é que, à
medida que os primeiros seguidores foram envelhecendo e
morrendo sem que Jesus regressasse, foi-se percebendo
que era necessário um registo escrito para ser lido em
voz alta nas diversas congregações, sob pena de a
memória se perder. As perícopas foram então redigidas
em folhas de papiro e lidas fora dos seus contextos
originais. E Jesus continuou sem voltar. Chegou-se
depois à conclusão de que, para surtir melhor efeito
junto dos fiéis, era possível alinhar as perícopas
segundo uma determinada ordem e reuni-las em grupos: as
referentes aos milagres, as dos exorcismos, as das
lições morais... O passo seguinte foi juntar todos
estes grupos para formar narrativas mais alargadas,
designadas
proto-evangelhos,
e
que
contavam
uma
história completa. Esses proto-evangelhos foram por fim
unidos numa única narrativa e nasceram...”