O israelita respirou fundo; a sua paciência, já
naturalmente escassa, tinha chegado ao limite.
“Você o quis!”
Uma dor aguda irrompeu nesse instante do dedo mindi-
nho de Tomás, como se o universo inteiro se centrasse
ali.
O historiador sentiu a visão encher-se de luzes e
soltou um grito de pura agonia.
Grossman tinha começado a serrar com o canivete suíço
que estivera a afiar e o sofrimento provocado pela
lâmina era indescritível.
A vítima tentou implorar que parasse, que tivesse dó,
que aquilo era de mais, mas as palavras atropelaram-se
e foram engolidas pelo berro de dor que lhe enchia a
garganta, como se o grito fosse, por si só, capaz de o
libertar da crueldade a que estava a ser sujeito.
Grossman amputava-lhe o dedo.
LXXVI
Algo aconteceu.
No auge de toda aquela dor, quando tudo parecia perdido
e a confissão se tornara inevitável, Tomás sentiu o
aperto firme do seu agressor descontrair de repente e,
logo a seguir, o braço esquerdo soltou-se.
Encolheu-o num movimento instintivo e contorceu-se no
chão, agarrando-se à mão ferida para tentar atenuar a
agonia. Não percebeu o que acontecera, mas o importante
é que acontecera. A dor no dedo mindinho era tremenda,
mas abrandou o suficiente para que ele pudesse abrir o
olho direito e tentasse perceber por que motivo Arnie
Grossman lhe havia largado o braço.
Viu o polícia israelita de joelhos diante dele com uma
expressão bizarra desenhada no rosto enrubescido, os
olhos arregalados a revirarem-se, a língua de fora no
estertor da asfixia e a ponta de uma lâmina a sair-lhe
junto à maçã-de-adão por entre golfadas cadenciadas de
sangue.
Crack.
Crack.
Dois tiros soaram com grande fragor, como se tivessem
sido disparados mesmo ao lado dos seus ouvidos.
Tomás quase se sentiu ensurdecer.
Apercebeu-se nesse instante do movimento de um vulto
atrás de Grossman e, olhando para ali, identificou-o.
Era Arpad Arkan.
O presidente da fundação tombou no chão como um saco e
ficou deitado de barriga para baixo, com dois fios de
fumo a saracotearem de buracos escuros nas costas como
bafos exalados pelas crateras de vulcões que
despertavam.
Tomás desviou o olhar para o lado e viu Valentina em
posição de tiro, o fumo a esvoaçar do cano da pistola.
No meio de toda aquela confusão compreendeu o que via
e, como num sonho, conseguiu reconstituir os traços
gerais do que acabara de suceder.
Arkan devia ter recuperado os sentidos e retirado do
braço a faca que lhe fora espetada. Apercebendo-se do
fogo que lavrava pelo santo dos santos, fugiu para a
porta e viu Tomás a ser torturado por Grossman.
Percebendo o que se passava, não perdeu tempo e espetou
a adaga dos sicarii no pescoço do polícia. O problema é
que não deve ter visto a italiana, ou então não
compreendeu o verdadeiro papel que ela desempenhava
naquela situação, e foi abatido pelas costas.
“Você enlouqueceu?”, perguntou o historiador com a
fúria a enrouquecer-lhe a voz, gatinhando para junto de
Arkan.
“Passou-se de vez?”
Valentina voltou para ele a mira da pistola fumegante.
“Quieto!”
Tomás inspeccionou a face do presidente da fundação.
Tinha os olhos semicerrados e vidrados no infinito, com
uma expressão que lhe deixou poucas dúvidas.
O português voltou o rosto na direcção da inspectora da
Polizia Giudiziaria.
“Tem a noção do que acabou de fazer?”
Valentina deitou um olhar assustado para as chamas que
se aproximavam; as labaredas encontravam-se já a uns
cinco metros e preparavam-se para envolver as estantes
mais próximas do espaço onde eles se encontravam.
“Abra a porta!”, ordenou ela, batendo com a palma da
mão na placa metálica que lhes obstruía a fuga.
“Não há tempo para andarmos aqui a discutir pormenores!
Abra esta maldita porta!”
Tomás arrastou o corpo de Arkan para junto da entrada,
passando ao lado do cadáver de Grossman.
“Ele é que sabia a senha!”, berrou de volta.
“Você quer sair daqui? Então porque matou a única
pessoa que conhecia a palavra de código? Isso faz algum
sentido?”
A italiana esboçou uma expressão desconcertada, os
olhos a saltitarem entre Tomás e o corpo inerte de
Arkan.
“O que quer dizer com isso? Pensei que você sabia a
senha!...”
“Eu presumo que sei!”, devolveu o historiador num tom
furioso.
“Presumo! Mas... e se o meu palpite estiver errado?”
Indicou o corpo que acabara de arrastar para junto da
porta.
“O único que de certeza conhecia a senha era aqui o
Arkan! E você acabou de o abater!” Abanou a cabeça.
“Bravo! É mesmo esperta, não há dúvida!”
O calor galopante pôs fim à incerteza que por esta
altura atormentava Valentina.
Ela tomou consciência de que se precipitara e
evidentemente cometera um erro, mas não tinha maneira
de desfazer o que fora feito e o fogo começara já a
alastrar à última estante. Dispunham de um minuto,
talvez dois, para sair dali. Não mais. Depois disso,
todo aquele espaço seria engolido pelo mar tormentoso
de chamas que envolvia o Kodesh Hakodashim.
“Abra a porta!”, berrou, já fora de si.
“Abra imediatamente esta porta!”
O historiador deitou uma olhadela às chamas que se
aproximavam. Não havia de facto muito tempo para agir.
“Eu abro”, disse.
“Mas primeiro você tem de lançar a pistola para o meio
do incêndio.”
“Abra a porta!”
“Não ouviu o que lhe disse?” Apontou para o fogo.
“Atire a pistola para ali e eu abro-a! Se não fizer
isso, não conte comigo. Não estou para apanhar um tiro
depois de ter destrancado a porta.”
Valentina perscrutou-lhe o rosto, tentando avaliar se
ele falava a sério. Não conseguiu ler-lhe a face, mas
não era difícil perceber o ponto de vista de Tomás. Por
que motivo haveria ele de abrir a porta se depois se
sujeitava a levar com uma bala na cabeça? Grossman
havia tentado extrair-lhe a senha com a ajuda do
canivete suíço, mas o idiota do Arkan aparecera de
surpresa
e
estragara
tudo.
Agora
ela
estava
inteiramente nas mãos daquele português.
“Va bene!”, rendeu-se. Pegou na pistola pelo cano e
atirou-a para o meio do inferno de chamas.
“Já está!”
“Linda menina!”
A seguir a italiana pegou no tubo de ensaio com o
material genético de Jesus, deu-lhe um beijo e lançou-o
na mesma direcção.