perguntou.
“Mãos de Fada!
Sabe porquê?
Porque faço magia na mesa de operações. Garanto-lhe que
vai sair daqui com um rosto de bebé. Nem um arranhão!
Continuará bonitão como sempre.”
“Jura?”
A médica pôs a mão sobre o coração, tapando a faixa com
o seu nome bordado na bata, e assumiu um semblante
solene.
“Cross my heart!”
A promessa deixou Tomás um tudo-nada mais tranquilo.
Recostou-se na almofada da cama e pôs-se confortável.
Não sabia porquê, mas tendia a ficar piegas sempre que
caía de cama. Era assim já em criança e pelos vistos
não mudara.
“Se eu vir nem que seja um arranhãozinho na cara, vai
levar com uma queixa”, avisou.
“Vou direitinho à Ordem dos Médicos!”
“Ui! Estou cheia de medo!”
“Tem razões para estar. Veja lá como me trata!...”
A médica acabou de consultar a ficha do paciente e
devolveu-a ao seu lugar, na grelha aos pés da cama.
Ergueu os olhos para o português e desfez o seu sorriso
de bonomia, como se entrasse agora nas coisas sérias.
“O senhor Arkan quer falar consigo.”
O anúncio surpreendeu Tomás.
“Como está ele?”
“Que lhe parece?”, respondeu Lesley com uma ponta de
sarcasmo.
“Levou dois tiros nas costas e ainda tem uma bala
alojada nos pulmões. Daqui a pouco vou operá-lo de novo
para a retirar.”
“Acha que se safa?”
A médica assentiu com a cabeça.
“Claro que sim”, disse.
“Há pouco íamos anestesiá-lo, mas ele pediu para lhe
dar uma palavra antes de iniciarmos os procedimentos
para a cirurgia.”
Observou-lhe o corpo estendido na cama.
“Sente-se em condições de caminhar até ao bloco
operatório ou prefere que eu chame a enfermeira e peça
uma cadeira de rodas?”
Com um gesto brusco, Tomás afastou o lençol e assentou
os pés no chão. Lesley inclinou-se para o ajudar, mas
ele repeliu-a com a mão engessada.
“Eu consigo”, disse. “Vai ver.”
Sentado à borda da cama, o português balançou-se e
transferiu o peso para as pernas. Sentia-se fraco e as
coxas tremiam-lhe, mas aguentou-se. Largou devagar os
apoios com as mãos e endireitou-se, equilibrando-se
sozinho em pé.
“Bravo!”,
exclamou
a
médica,
batendo
palmas
entusiásticas.
“Muito bem! Isto é que é um homem!”
Esta
última
frase
soou
a
Tomás
um
tudo-nada
condescendente, mas não se importou. Pusera-se de pé
pelos seus próprios meios e sentia-se orgulhoso com o
feito. Depois de tudo o que havia passado no inferno do
santo dos santos, a convalescença estava a revelar-se
rápida. Mais dia menos dia teria alta e sairia dali.
Ah, como era bom estar vivo!
“Vamos?”
Ao vê-lo de pé, Lesley passou à frente e saiu para o
corredor, indicando o caminho.
“Por aqui.”
Ainda de pijama, Tomás seguiu a figura de bata branca
pelo corredor do hospital. Os seus movimentos não se
mostravam ágeis e sentia os músculos das pernas
flácidos, quase como gelatina; era o resultado dos dois
dias que estivera deitado naquela cama. Apesar da
evidente fragilidade, o facto é que se achava bem
melhor e com força suficiente para caminhar. Aliás, o
exercício só lhe faria bem.
O telemóvel tocou no bolso do pijama. Pegou no aparelho
e consultou o visor. Dizia Mãe. Carregou no botão verde
e atendeu.
“Bom dia, mãe!”, cumprimentou. “Tudo bem?”
“Ai, filho!”, devolveu a voz do outro lado da linha.
“Ando tão ralada contigo!”
O coração de Tomás deu um pequeno salto. Não lhe
contara nada do que se havia passado, para não a
preocupar, mas pelos vistos alguém já lhe tinha dito
alguma coisa.
“Estou óptimo”, apressou-se a dizer. “Isto não é nada.”
“Não é nada?”, empertigou-se ela, quase indignada.
“Disseram-me que andas a viajar por essas terras onde
só há guerras e malucos a meterem bombas e mais sei lá
o quê! Minha Nossa Senhora! Nem imaginas como fiquei
quando liguei para a faculdade e me disseram que tu
andavas por essas paragens! Já fui à missa e tudo! Ai
Jesus, estou que nem uma galinha! Não páro de rezar por
ti!”
Não era tão mau como isso, percebeu o historiador. A
mãe fora pelos vistos informada de que ele estava no
Médio Oriente, mas ninguém lhe contara o que havia
sucedido nos últimos dias. Ainda bem! Teria uma síncope
se soubesse!
“Está tudo bem”, murmurou com doçura, num tom mais
adequado para a tranquilizar.
“Sabe onde me encontro neste momento? Em Jerusalém!”
A voz do outro lado hesitou.
“Jerusalém?”, perguntou, como se se quisesse certificar
de que havia escutado bem. “Estás em Jerusalém? Na
Terra Santa? O sítio por onde andou o Senhor?”
“Aí mesmo!”
“Ah, filho! Que sorte! Que sorte!”
O tom de voz da mãe mudara por completo. Perdeu a
urgência e a aflição e tornou-se entusiástico.
“É verdade. É uma terra muito interessante.”
“Interessante” escandalizou-se ela.
“Estás na terra do Senhor, filho! A terra do Senhor!
Olha lá, já passaste pela Via Dolorosa, onde aqueles...
aqueles torcionários torturaram Jesus? E foste ao Santo
Sepulcro, onde o crucificaram, coitadinho?”
“Vou lá amanhã... ou depois.”
“Ah! Quando fores ao Santo Sepulcro acende uma velinha
por mim! Acendes? Não te esqueças de que Jesus morreu
para nos salvar, filho! Temos de lhe estar agradecidos,
ouviste? Ele morreu por nós! Está lá em cima, à direita
de Deus Nosso Senhor, a ver o que fazemos e a velar por
nós.”
“Pois é”, respondeu Tomás.
“Eu... eu acendo uma vela por si.”
“Acende uma por mim, uma pelo teu pai e outra por ti,
filho”, apressou-se ela a recomendar.
“Tu também és cristão, nunca o esqueças! Tu também tens
direito à salvação!”
“Com certeza. Vou acender três velas.”
A mãe suspirou com satisfação, como se tivesse acabado
de fazer a boa acção do dia.
“Ainda bem, Tomás.”
Mudou o tom de voz, tornando-se de repente apressada.
“Olha, estão a sair para a missa. Vou aproveitar e dou
ali um saltinho à Igreja de São Bartolomeu para contar
ao padre Vicente por onde andas. Ele vai ficar muito
satisfeito por saber que estás na Terra Santa rodeado
desses apóstolos todos que para aí há. Cuida de ti,
filhinho! Não te esqueças de acender as velas no Santo
Sepulcro. Jesus morreu para nos salvar!”