“Os quatro evangelhos”, atalhou Valentina com um
sorriso. “Fascinante!”
Tomás fez uma careta.
“Na
verdade,
não
foram
só
quatro”,
corrigiu.
“Apareceram dezenas de evangelhos.”
“Dezenas?”
“Mais de trinta. Os primeiros de que temos registo
foram o Evangelho segundo Marcos e a Fonte Q, um
evangelho perdido e cuja existência inferimos a partir
de outros dois evangelhos, os de Mateus e Lucas, que
parecem ir ambos beber a uma mesma fonte, o Q.”
“Q?” estranhou Valentina. “Que raio de nome é esse?” “Q
de Quelle, palavra alemã que designa fonte. Mas há
outras fontes, como a M, usada exclusivamente por
Mateus, e a L, usada apenas por Lucas.”
“Todas perdidas?”
“Sim”, assentiu o historiador. “Depois surgiram mais
evangelhos, como o de João, o de Pedro, o de Maria, o
de Tiago, o de Filipe, o de Maria Madalena, o de Judas
Tomás, o de Judas Iscariotes, o de Tomé... enfim,
dezenas de evangelhos diferentes.”
“Pois, confesso que já li qualquer coisa sobre isso”,
observou a italiana. “O que não sei é o que aconteceu a
esses evangelhos...”
“Mais tarde foram rejeitados.”
“Sim, mas porquê?”
Era uma boa pergunta, sabia o historiador.
“Sabe, nenhum evangelho é uma mera crónica dos
acontecimentos”,
explicou.
“Os
evangelhos
são
reconstituições teologicamente orientadas.”
“O que pretende dizer com isso?”
“Simplesmente que cada evangelho apresentava uma
teologia específica”, indicou, evitando mais pormenores
controversos para não desencadear um novo ataque de
fúria da italiana. “Isso estabeleceu o caos entre os
fiéis, como deve calcular. Uns evangelhos apresentavam
Jesus como uma figura exclusivamente humana, outros
como uma figura exclusivamente divina, outros ainda
como uma figura divina dentro de uma figura humana. Uns
diziam que havia ensinamentos secretos só acessíveis a
iniciados, outros que Jesus nem sequer morrera. Havia
quem defendesse que existia apenas um deus, outros
diziam que eram dois deuses, outros apontavam para
três, outros para doze, outros para trinta...”
“Madonna! Que confusão!”
Tomás assentiu.
“De facto, ninguém se entendia”, disse. “Formaram-se
vários grupos dominantes de seguidores de Jesus, cada
um com os seus evangelhos. Havia os ebionitas, judeus
que diziam ser Jesus apenas um rabino que Deus
escolhera por se tratar de uma pessoa particularmente
correcta e conhecedora da lei entregue a Moisés. Há
indícios de que Pedro e Tiago, irmão de Jesus, eram
considerados precursores desta corrente. Depois
surgiram
os
paulistas,
que
preconizavam
a
universalização dos ensinamentos aos gentios e achavam
que Jesus tinha características divinas e a salvação
decorria da crença na sua ressurreição, e não do
respeito pela lei. Havia também os gnósticos, que
encaravam Jesus como um homem temporariamente encarnado
por um deus, Cristo, e pensavam que alguns seres
humanos continham dentro deles uma centelha divina que
poderiam libertar se tivessem acesso a um conhecimento
secreto. Por fim existiam os docetistas, que diziam que
Jesus era um ser exclusivamente divino que apenas
parecia humano. Nem sequer tinha fome ou sono, apenas
fingia ter.”
Valentina fez um gesto largo com o braço direito,
englobando a Biblioteca do Vaticano e tudo o que a
rodeava. “Qual dessas correntes é a nossa?”
Tomás sorriu.
“A nossa? Quer dizer, a da actual Igreja?”
“Sim.”
“Os cristãos de Roma”, sentenciou. “Foram estes que se
organizaram de forma mais eficiente, com hierarquia e
estruturas nas suas congregações. Nasceram assim as
igrejas. Os outros grupos tinham organizações mais
informais.
Além
disso,
beneficiaram
da
forte
implantação dos paulistas no mundo pagão. É certo que o
centro do cristianismo continuou, durante algum tempo,
a ser Jerusalém, onde se encontravam os judeus
cristãos. Acontece que, no ano 70, os Romanos
destruíram Jerusalém e o centro de gravidade do
cristianismo não poderia continuar aí. Para onde acha
que se transferiu?”
A italiana encolheu os ombros.
“Sei lá!”
O historiador apontou para o chão.
“Para aqui, claro! Não era Roma a capital do império?
Não iam todos os caminhos dar a Roma? Não é a igreja
hoje dominante designada católica apostólica romana?
Quem melhor poderia liderar o cristianismo que os
cristãos que se encontravam aqui na capital imperial?
Ocupavam uma situação privilegiada, que lhes permitiu
tornarem-se dominantes. E fizeram pleno uso dessa
posição. Com o tempo rejeitaram os evangelhos de vários
grupos diferentes, que catalogaram como heréticos, e
valorizaram os textos que consideravam verdadeiros. O
seu juízo tinha muita força, porque estes cristãos
apresentavam-se bem organizados e com estruturas
hierárquicas rígidas lideradas por bispos, o que
facilitava a transmissão de ordens. Além disso, eram
mais abastados e emitiam instruções a partir da capital
do império. Os evangelhos considerados heréticos
deixaram de ser copiados e gradualmente a doutrina
dominante
passou
a
assentar
nos
quatro
textos
evangélicos perfilhados pelos romanos: os de Mateus,
Marcos, Lucas e, embora inicialmente com alguma
relutância, João.”
“E foi assim que os Evangelhos se juntaram às cartas
como textos de referência?”
“Exacto. Acontece que alguns desses textos, como o
Evangelho segundo Mateus e a Primeira Carta de Paulo a
Timóteo, começaram a pôr as palavras de Jesus ao nível
das Sagradas Escrituras, está a ver? Insinuavam assim
que elas tinham a mesma autoridade que se reconhecia ao
Antigo Testamento, o que constituiu uma importante
inovação teológica.” Fez uma careta teatral. “A palavra
de Jesus valia tanto como a das Sagradas Escrituras?”
Desfez a careta. “Mais ainda, na Segunda Carta de Pedro
consta uma crítica aos ‘incultos e inconstantes’ que
deturpam as epístolas de Paulo ‘como o fazem com as
outras Escrituras’. Ou seja, as próprias cartas de
Paulo já são aqui elevadas à categoria de Escrituras!
Daqui até a sua aceitação como cânone, como deve
calcular, bastou um passo.”
“Quando foi isso?”
“O cânone ficou definido alguns anos depois de
Constantino ter adoptado o cristianismo”, disse,