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fazendo um gesto na direcção do Codex Vaticanus. “Mais

ou menos quando este códice foi feito, no século IV.

Determinou-se então que as novas Escrituras eram

constituídas por vinte e sete textos: os evangelhos de

Lucas, Marcos, Mateus e João, que narravam a vida de

Jesus, e ainda as crónicas da vida dos apóstolos, a que

se chamou Actos dos Apóstolos, e as diversas cartas

escritas pelos próprios apóstolos. Para além do

Apocalipse, de João, a fechar.”

A italiana assentou o queixo na palma da mão, numa pose

pensativa, e reflectiu sobre o que acabava de escutar.

“Pode haver textos considerados heréticos que sejam

verdadeiros”, observou ao fim de alguns instantes.

“Como sabemos que só os quatro evangelhos canónicos são

historicamente correctos?”

“A questão é legítima”, concordou Tomás. “Porém, há um

certo consenso entre os académicos de que a escolha foi

globalmente bem feita. Os textos heréticos, hoje

chamados apócrifos, são demasiado fantasiosos. Um deles

mostra Jesus em menino a matar outras crianças com

actos de magia, veja só! Outro põe a cruz da

crucificação a falar, como se fosse uma pessoa. Já viu?

Uma cruz falante! Os cristãos de Roma não eram dados a

fantasias e foram rejeitando estes textos. De todos os

apócrifos, sabe qual é o único que pode ter material

genuíno?”

A pergunta extraiu um olhar vazio de Valentina.

“Não faço a mínima ideia.”

“O Evangelho segundo Tomé”, disse. “Já há muito tempo

que se sabia da existência desse evangelho, mas

pensava-se que, depois de ser declarado herético,

estava perdido para sempre. Acontece que em 1945 foram

descobertos acidentalmente em Nag Hammadi, no Egipto,

vários volumes de manuscritos apócrifos, incluindo o

Evangelho segundo Tomé. Houve uma grande agitação, como

pode calcular, maior ainda quando se leu o seu

conteúdo.”

A revelação excitou a curiosidade da inspectora.

“Ai sim? O que tinha ele?”

“É um manuscrito muito interessante porque não inclui

nenhuma narrativa. Nada de nada. Limita-se a registar

cento e catorze ensinamentos de Jesus, muitos dos quais

também aparecem nos evangelhos canónicos, e outros

ensinamentos que não aparecem em parte nenhuma, mas que

podem ser agrafa, isto é, citações autênticas não

canónicas. Aliás, há académicos que acham que as

citações que se encontram no Evangelho segundo Tomé são

mais próximas das palavras realmente pronunciadas por

Jesus do que as citações que se encontram nos

evangelhos canónicos. Daí que alguns lhe chamem o

quinto evangelho.”

“Se assim é, porque foi excluído do cânone?”

“Porque alguns dos seus ensinamentos podem ser

interpretados como gnósticos”, devolveu Tomás. “Isso é

algo que os cristãos romanos, que se tornaram a

ortodoxia, queriam em absoluto evitar. Mas o Evangelho

segundo Tomé é um documento com informação histórica

que pode ser pertinente, embora o assunto divida os

académicos. De qualquer modo, a sua descoberta

consolidou uma velha suspeita de que a Fonte Q, o

manuscrito perdido que alimentou Mateus e Lucas, seria

igualmente um texto composto apenas por ensinamentos.”

Valentina balançou a cabeça num movimento afirmativo e

emitiu um som apreciativo.

“Muito curioso, sim senhor”, disse. “Mas onde quer

chegar com isso tudo?”

O historiador endireitou-se no seu lugar e passeou a

atenção pelas estantes carregadas de livros da

Biblioteca Apostólica Vaticana.

“Quero chegar a esta pergunta”, disse, virando-se para

a sua interlocutora. “Onde estão os originais de todos

os textos canónicos que compõem o Novo Testamento?”

Num movimento quase instintivo, os olhos azuis da

inspectora da Polizia Giudiziaria acompanharam a

deambulação visual de Tomás pela Sala Consultazioni

Manoscritti.

“Bem... aqui no Vaticano”, disse. “Talvez mesmo nesta

biblioteca.” Sentiu o olhar perscrutador do seu

interlocutor a examiná-la e, intuindo que tinha dado a

resposta errada, hesitou. “Não?”

Tomás abanou a cabeça.

“Não”, disse com ênfase. “Não há originais.”

“Como?”

“Os originais do Novo Testamento não existem.”

IX

Estudar um manuscrito através de um ecrã de computador

era uma tarefa exigente para qualquer um, mas fazê-lo

pela madrugada fora revelou-se uma verdadeira loucura.

Alexander Schwarz esfregou os olhos cansados e

injectados de sangue e endireitou o tronco, sentindo as

articulações doerem-lhe. Havia demasiado tempo que

estava sentado naquela posição, a atenção a dançar

entre o texto no ecrã e o bloco de notas onde registava

as suas observações.

“Já chega!”, murmurou nesse instante, sentindo os olhos

pesarem-lhe. “Não posso mais!...”

Fez logout ao file do manuscrito e desligou o

computador. Olhou em redor e viu a sala deserta e

mergulhada na treva, as sombras a reflectirem a luz da

lâmpada que incidia sobre ele. Havia também o candeeiro

do balcão, lá ao fundo, para onde Alexander espreitou.

Quis chamar o funcionário que a biblioteca tinha

destacado para o acompanhar naquela noite, mas não o

descortinou. Devia ter ido ao quarto de banho, pensou.

Arrumou os seus papéis, engoliu de uma assentada os

restos já frios do café que tinha no copo descartável e

levantou-se por fim. Cambaleou no primeiro passo, o

corpo afectado pela posição prolongada à mesa de

trabalho. Os músculos pareciam enferrujados, embora ao

fim de três passos já caminhasse normalmente. Chegou

junto do balcão de atendimento e espreitou em todas as

direcções, mas não viu sinais do rapaz.

“Onde raio se meteu o tipo?”, interrogou-se em voz

baixa.

Espreitou no quarto de banho e não o encontrou. Pensou

que poderia ter ido buscar qualquer coisa para beber e

foi até à máquina do café, mas não vislumbrou vivalma.

“Alô?”, chamou em voz alta. “Alô?”

Ninguém respondeu. A Chester Beatty Library estava

integrada num edifício de traça moderna. À noite,

porém, com as salas às escuras e as raras fontes de luz

a projectarem estranhas sombras no chão e nas paredes,

a biblioteca adquiria uma atmosfera inesperadamente

lúgubre. E o pior é que o ambiente pesado o contagiava

já.

“Alô? Está aí alguém?”

A voz ecoou pela sala e morreu no silêncio.

Definitivamente, o empregado desaparecera. Alexander

decidiu não esperar mais e meteu pelo corredor. O

problema é que o resto do piso estava mergulhado na

escuridão e ele não sabia onde se encontrava o