“Daí a importância desta nota marginal do escriba a
repreender o copista que a Patrícia veio consultar”,
disse, indicando a anotação escrevinhada no manuscrito.
“‘Estúpido e ignorante! Deixa o velho texto em paz, não
o alteres!’ Tudo porque alguém tinha mudado phanerón
para pherón.” Folheou o códice com cuidado. “E não é
caso único aqui no Codex Vaticanus. Ora repare no que
vem escrito no Evangelho segundo João. ”Localizou o
evangelho e procurou a referência. “João, 17:15. Aqui
está. É Jesus a implorar a Deus a favor da humanidade.”
O texto estava redigido em grego, mas Tomás traduziu-o
directamente. “Não peço que os livres do mal.” O
historiador ergueu os olhos interrogativos na direcção
da sua interlocutora. “Não peço que os livres do mal”?
Jesus pediu a Deus que mantivesse o mal a afligir a
humanidade? Mas o que é isto?”
Valentina devolveu-lhe o olhar com uma expressão
perdida, sem saber como interpretar a estranha frase.
“Pois... não percebo bem.”
Tomás bateu com o dedo no velho pergaminho.
“Isto é um erro de copista!”, exclamou. “A frase
original é ‘Não peço que os tires do mundo, mas que os
livres do mal’. Acontece que o copista do Codex
Vaticanus saltou inadvertidamente uma linha e copiou
‘Não peço que os livres do mal’. Este tipo de erro
chama-se periblepsis e ocorre quando duas linhas de um
texto terminam com as mesmas palavras ou as mesmas
letras. O copista está a copiar uma linha, baixa os
olhos para escrever, e quando os levanta olha para a
mesma palavra na linha seguinte, não na linha anterior,
acabando sem querer por ignorar o texto entre as duas
palavras iguais.” Fez um gesto para o manuscrito. “E
estamos a falar do Codex Vaticanus, que é considerado
um dos trabalhos de cópia mais profissionais do mundo
antigo! Agora imagine os erros que não andarão por toda
a Bíblia, cujos originais desapareceram e dos quais só
temos cópias das cópias das cópias das cópias das...”
“Pois, já percebi”, impacientou-se Valentina. “E então?
Que eu saiba, uma andorinha não faz a Primavera! Lá
porque encontrou um ou outro errozito, isso não
invalida o Novo Testamento!...”
Tomás fez um ar escandalizado.
“Um ou outro errozito? Tem ideia de quantos erros já
foram detectados nos mais de cinco mil manuscritos
antigos da Bíblia que sobreviveram?”
A italiana encolheu os ombros e pegou numa pequena
garrafa de água mineral que um polícia corpulento lhe
veio trazer.
“Não sei”, disse enquanto desenroscava a tampa.
“Quantos? Vinte? Trinta erros? E depois?”
Desenroscou a tampa e levou a garrafa à boca, quase
indiferente à resposta. O historiador inclinou-se para
diante, a atenção presa nela enquanto bebia a água
mineral, e soprou-lhe o número perto do ouvido.
“Quatrocentos mil.”
Valentina engasgou-se e tossiu, deixando a água
escorrer pelo queixo e voltando-se para o lado de modo
a evitar salpicar o Codex Vaticanus. Passou as costas
da mão pela boca, para se secar, e fitou Tomás com uma
expressão incrédula.
“Quatrocentos mil erros na Bíblia? Está a brincar!...”
O historiador acenou afirmativamente, a confirmar o
número.
“Quatrocentos mil”, repetiu. “Na verdade, mais do que
isso.”
“Mas... mas... não pode ser! A Bíblia contém mais de
quatrocentos mil erros? Que absurdo!”
“É verdade que a esmagadora maioria é composta por
coisas
pequenas”,
concedeu
Tomás.
“Palavras
mal
copiadas, linhas que se saltam, esse tipo de coisas
acidentais.” Soergueu o sobrolho. “Mas há outros erros
que são propositados. Coisas que os autores dos
Evangelhos inventam, por exemplo.”
“Que disparate!”, retorquiu a italiana. “Como pode
saber se uma determinada coisa que aparece escrita no
Novo Testamento é ou não inventada? Esteve lá para
poder dizer isso?”
“Posso não ter lá estado, mas, tal como vocês,
detectives, também nós, historiadores, dispomos de
métodos para apurar a verdade dos factos.”
“Que métodos? Do que está a falar?”
“Estou a falar do método de análise histórica, que
assenta em critérios de crítica textual.” Tomás abriu a
palma da mão, mostrando todos os dedos estendidos.
“Cinco critérios.”
“Desculpe, mas não vejo como se possa, através da mera
análise de um texto, determinar o que há nele de
verdade ou de invenção, e muito menos na Bíblia. Sejam
quantos forem os critérios a que recorra.”
“Oiça antes de julgar”, recomendou o historiador.
“Estes critérios são fiáveis quando bem aplicados.
Olhe, o primeiro é o da antiguidade. Quanto mais antigo
é um manuscrito, maior é a nossa confiança no seu
rigor. Isto porque o texto de uma cópia antiga sofreu
necessariamente menos corrupções do que uma mais
recente. O segundo critério é a abundância de fontes.
Quanto mais fontes independentes umas das outras
disserem a mesma coisa, mais confiança temos de que
essa coisa aconteceu realmente. Mas precisamos de nos
assegurar de que as fontes são mesmo independentes. Por
exemplo, uma informação que apareça nos evangelhos de
Lucas e Mateus não é necessariamente independente, uma
vez que os dois evangelistas estão muitas vezes a citar
a mesma fonte, o manuscrito Q. O terceiro critério é o
do embaraço. Diz-se em latim: proclivi scriptioni
praestat ardua, isto é, a leitura mais difícil é melhor
do que a fácil. Ou seja, quanto mais embaraçosa for uma
informação, mais certeza temos de que é verdadeira.”
“Uma informação embaraçosa?”, estranhou Valentina. “O
que quer dizer com isso?”
“Deixe-me dar-lhe um exemplo do Novo Testamento”,
sugeriu Tomás. “Os vários Evangelhos narram que Jesus
foi baptizado por João Baptista. Esta informação é
embaraçosa para os cristãos, porque se acreditava que a
pessoa que baptizava era espiritualmente superior
àquela que era baptizada. Ora o episódio mostra Jesus
numa situação de subalternidade espiritual em relação a
João. Como é isso possível, se Jesus é o Filho de Deus?
Além do mais, o baptismo servia para purificar uma
pessoa dos seus pecados. Se Jesus se baptizou, isso
significa que também ele era um pecador. Mais uma vez,
como pode isso ser verdadeiro se ele era o Filho de
Deus? É altamente improvável que os autores dos
Evangelhos tenham inventado este episódio do baptismo