de Jesus, tão embaraçoso ele se revela. Porque o
fariam, se tal relato põe em causa a superioridade e a
pureza de Jesus? Os historiadores consideram por isso
que o baptismo de Jesus por João ocorreu mesmo. É um
facto histórico. Nenhum evangelista inventaria uma
coisa tão embaraçosa.”
“Ah, estou a entender.”
“O quarto critério é o do contexto. Será que as
informações que constam de um evangelho se enquadram no
contexto da época? E o quinto critério é o da própria
estrutura intrínseca do texto, ou seja, o seu estilo de
escrita, o vocabulário usado e até a tendência
teológica do seu autor. Se num trecho aparecem por
exemplo várias palavras que não surgem em qualquer
outra parte, é altamente provável que se trate de um
acrescento feito por um copista. Mas atenção, estes
critérios não devem ser aplicados às cegas. Pode haver
um texto que seja mais antigo do que outro mas, porque
elimina
determinados
elementos
embaraçosos
ou
acrescenta coisas fantasiosas, deixa-nos a convicção de
que se trata de uma cópia de pior qualidade, quando
comparada com um texto mais recente. Enfim, tudo tem de
ser ponderado.”
A italiana fez que sim com a cabeça.
“Pois, trabalho de detective!...”, observou. “Com tudo
isto, no entanto, onde quer chegar?”
“Quero chegar aos episódios ficcionais do Novo
Testamento.” Aguardou um instante, para obter efeito
dramático. “Como a história da adúltera, por exemplo.”
Valentina quase saltou da cadeira.
“Ah, sim! Disse que me ia dar a prova de que essa
história é uma fraude. Pois ainda não vi nada!”
O historiador lançou-lhe um olhar carregado de avisos.
“Olhe que não é apenas essa história. Há outras.”
“Quais?”
Tomás respirou fundo, subitamente cansado. Tinha dis-
pendido a última meia hora a explicar à inspectora
italiana matéria elementar sobre os manuscritos da
Bíblia. O mais duro, porém, estava para vir. E era
duro, sabia, porque atingia alguns elementos centrais
da teologia cristã. O académico tamborilou os dedos na
mesa de leitura e nem se atreveu a olhar para a sua
interlocutora quando por fim ganhou coragem e respondeu
à pergunta.
“A narrativa da ressurreição de Jesus, por exemplo.”
“A narrativa da... da ressurreição?”, alarmou-se
Valentina. “O que tem ela?”
Encarou-a por fim.
“É outra fraude.”
XI
A relva dos Dubh Linn Gardens estava molhada com a
humidade gelada que a neblina ali pousara de mansinho,
mas Paddy McGrath mostrava-se já insensível àquele
género de desconforto. E porque haveria de se importar?
Tinha
cinquenta
e
dois
anos,
encontrava-se
desempregado, a mulher abandonara-o e ele achava-se o
homem mais infeliz do mundo.
Estendeu-se no tapete verde e ergueu bem alto a garrafa
de whisky; o líquido cor de caramelo ia a um terço da
garrafa, o que significava que ainda lhe restava uma
boa quantidade para afogar as memórias do ano pavoroso
que tinha tido.
“And. it’s all for me grog, me jolly jolly grog”,
cantarolou em voz baixa. “All for me beer and tobacco.
Well I’ve spent all me tin with the ladies drinking
gin...'”
O whisky fazia-o feliz por umas horas, ou pelo menos
apagava-lhe durante esse tempo a infelicidade da
memória, pelo que engoliu mais um trago e recomeçou a
entoar a música que na sua juventude animara muitas
folias. Paddy tinha consumido quase trinta anos da sua
vida a trabalhar na função pública. Trinta anos! De
repente veio a crise, os bancos foram atingidos, o
governo financiou-os, o défice público ficou a
descoberto, veio o FMI e seguiram-se os despedimentos
em cadeia. Fora apanhado na voragem dos cortes em
pessoal e viu-se de repente sem emprego.
Com mais de cinquenta anos, quem o iria contratar?
Sentindo-se
um
farrapo
abandonado,
começou
por
encharcar as mágoas nas Guinness do Mulligan’s, o pub
da esquina. Chegava a casa todas as noites a cambalear
e a vomitar. Ao fim de alguns meses nisso, a mulher,
aquela cabra de voz esganiçada e língua viperina,
abandonou-o e regressou a Limerick.
“Bruxa!”, rosnou logo que pensou nela. “Que apodreça
corroída pelo seu próprio veneno!...”
Depois vieram os bancos e ficaram-lhe com a casa por
causa das mensalidades que deixara de pagar.
“Uns abutres, esses tipos dos bancos!”, acrescentou de
seguida, já sem saber se falava com ele próprio ou se
alguém o escutava. “Que se enterrem na porcaria que
andaram a fazer, esses animais!...”
Porém, Paddy tinha bem a consciência de que quem andava
enterrado na porcaria era ele, ele que ficara sem tecto
e dormia ao relento. Havia já quatro meses que fizera
dos Dubh Linn Gardens a sua cama. Ergueu a cabeça e
olhou em redor. Havia sítios piores, considerou,
esfregando os cabelos desgrenhados. O jardim podia não
ser um local muito confortável para dormir, em especial
nas noites frias e húmidas de Inverno, mas ao menos era
bonito. Além disso tinha vizinhos de prestígio, como o
castelo e a biblioteca. E silenciosos, ainda por cima.
No fundo de que se queixava ele?
Lançou um olhar quase carinhoso na direcção da Chester
Beatty Library, como se buscasse confirmação dos
predicados que acabara de lhe atribuir. Ficou por isso
admirado quando viu a porta de entrada abrir-se e o
guarda nocturno da biblioteca despedir-se de um homem
alto e magro, com um porte distinto.
“Olaré! Movimento a esta hora?”
Sentia-se entorpecido pelo álcool e bebeu mais um gole,
como se essa fosse a maneira mais eficiente de
recuperar a sobriedade. Depois observou o homem alto e
magro a afastar-se. Fez tenção de se voltar a estender
na relva, aproveitando o embalo do sono que começava a
pesar-lhe nos olhos, mas um movimento inesperado fê-lo
deter-se um instante mais.
De uma sombra lá ao fundo emergiu um vulto que se
aproximou a correr em direcção às costas do homem que
acabava de sair da biblioteca. O vulto avançava com
passos rápidos, mas furtivos, e, com uma agilidade
fulminante, saltou sobre a sua presa. As duas figuras
ficaram momentaneamente unidas, os contornos dos corpos
esbatidos na escuridão. Depois o vulto emitiu um grito
de consternação e afastou-se a correr, deixando o homem
estendido no chão.
Apanhado de surpresa pela brevidade e pela estranheza
do sucedido, Paddy esfregou os olhos com força e depois