voltou a abri-los. Fitou o local onde lhe parecera que
algo tinha sucedido e pensou por momentos que havia
sonhado, mas depressa situou o corpo estendido no chão
e percebeu enfim que os sentidos não o tinham enganado
e que havia de facto visto o que pensara que vira.
Levantou-se da relva, cambaleante, e, com a sua voz de
ébrio, gritou por socorro.
XII
A beldade de cabelos castanho-escuros encaracolados e
olhos azuis abanava a cabeça sem cessar, recusando-se
terminantemente a aceitar o que acabara de ouvir.
“Agora já não é apenas a história da adúltera que é
falsa?”, perguntou de dentes cerrados, mal contendo a
irritação que a envenenava. “Também a ressurreição de
Jesus? Mas que conversa vem a ser essa? Está a brincar
comigo ou quê?”
O tom era de tal modo agressivo que Tomás deu por uma
gota de transpiração a escorrer-lhe pelas têmporas,
ziguezagueando como uma lágrima. Teria feito mal em
contar aquilo? Começava a alimentar sérias dúvidas
sobre a sensatez de expor a uma católica devota as
informações históricas sobre Jesus que haviam sido
extraídas pelos historiadores dos vestígios existentes.
Mas uma vez que se pusera a trilhar aquele caminho,
sabia, já não havia recuo. Não podia dizer coisas
daquelas sem ir até às últimas consequências. Era tarde
de mais para se arrepender...
“Tenha calma”, pediu. “Não se enerve.”
“Eu estou calma, ouviu?”, quase gritou a italiana. “Não
me enervo facilmente! Não sou dessas! Mesmo quando por
vezes tenho motivos para me enervar. Como quando escuto
certas alarvidades!...”
“Não são, receio bem, alarvidades. São coisas que...”
“Ai não são?”, cortou ela. “Diz coisas dessas sem
apresentar a mínima prova e está à espera de quê? Que
digamos ámen? Obrigado por nos trazer a luz, a nós, os
papalvos? Está à espera que lhe agradeça? Está à espera
de quê?”
O olhar de Tomás endureceu.
“Estou à espera que me oiça”, disse, com veemência
inesperada. Apontou-lhe o dedo. “Você disse-me que me
escutaria sem se zangar, não disse? Agora cumpra!”
Valentina fechou os olhos, pronunciou num sussurro uma
litania imperceptível em italiano, respirou fundo e
voltou a encarar Tomás, desta feita no perfeito
controlo das emoções.
“Então diga lá”, concedeu, num registo perfeitamente
tranquilo que surpreendeu o seu interlocutor; parecia
impossível transfiguração tão instantânea. “Quais são
afinal as provas que tem para me apresentar?”
Tomás olhou-a com desconfiança, na dúvida sobre se
aquele tom era genuíno ou fingido. Percebendo a
hesitação, a italiana pestanejou e exibiu um sorriso
tão encantador e luminoso que lhe arrancou, também a
ele, um sorriso.
“A primeira coisa que tem de perceber é que há erros na
Bíblia que são intencionais”, disse Tomás, apesar de
tudo com cautela. “Os erros acidentais são muito mais
numerosos, claro. Mas os intencionais, receio bem,
também existem.”
“As provas, professor Noronha.”
“Olhe, logo o segundo versículo do Evangelho segundo
Marcos”, indicou. O texto diz: ‘Conforme está escrito
no profeta Isaías: Eis que envio, à Tua frente, o Meu
mensageiro, a fim de preparar o Teu caminho.’ O
problema é que o autor do Evangelho se enganou, porque
essa citação não é de Isaías, mas do Êxodo, 23:20.
Muitos copistas aperceberam-se deste erro e emendaram
para ‘Conforme está escrito pelos profetas’. Ora isso é
uma alteração fraudulenta do texto original.”
Valentina curvou os lábios.
“Sim, mas não me parece grave.”
“É uma alteração intencional e não está fiel ao
original”, insistiu Tomás. “E, ao contrário do que
possa parecer à primeira vista, é uma alteração
importante. O erro revela-nos algumas limitações
teológicas do autor do Evangelho. Ao apagar o erro,
está-se a adulterar a percepção da qualidade do seu
autor.”
A italiana inclinou levemente a cabeça para o lado,
concedendo o argumento.
“Seja”, disse. “Mas ainda não me apresentou as provas
sobre as fraudes nas histórias da adúltera e da
ressurreição...”
Tomás ergueu a mão, como se a quisesse travar.
“Já lá vai”, indicou, pedindo-lhe que tivesse
paciência. “Primeiro queria que ficasse com uma ideia
mais clara do tipo de alterações intencionais que os
copistas foram fazendo ao longo dos séculos.” Indicou
com o olhar o códice pousado na mesa. “Leia o que está
escrito em Mateus, 24:36. Jesus profetiza o fim dos
tempos e diz: ‘Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém
o sabe, nem os anjos do Céu, nem o Filho; só o Pai.’
Este versículo traz problemas óbvios ao conceito de
Santíssima
Trindade,
que,
entre
outras
coisas,
estabelece que Jesus é Deus. Se é Deus, é omnisciente.
No entanto, neste versículo, Jesus admite que não sabe
quando será o dia e a hora do juízo final. Como é
possível? Jesus não é Deus? Não é ele omnisciente? Para
resolver este paradoxo incómodo, muitos copistas
eliminaram a expressão ‘nem o Filho’, e assim
resolveram o problema.” Bateu com o indicador na mesa.
“Esta, minha cara, é uma alteração intencional típica
feita por motivos teológicos. Não sendo inocente,
também não é inconsequente, como estou certo que
perceberá.”
“Mas essa alteração mantém-se, ainda hoje?”
“Esta alteração foi denunciada e, após grande polémica,
as traduções mais fiéis decidiram recuperar o texto
original. Assim sendo, mantêm o paradoxo e rezam para
que os fiéis não o notem. Mas o importante é sublinhar
que os copistas não cometem apenas erros acidentais. Há
muitas alterações que são intencionais. Por exemplo,
quando encontravam pequenas alterações de uma história
nas diferentes cópias, muitos deles eliminavam as
diferenças e harmonizavam os textos, alterando assim
intencionalmente o que copiavam. Chegaram ao ponto de
inserir histórias que não se encontravam nos evangelhos
que estavam a copiar.” Fez uma pequena pausa, para
efeito dramático. “É o caso da história da adúltera e
da narrativa da ressurreição no Evangelho segundo
Marcos.”
“Ah-ha!” exclamou Valentina. “Custou, mas foi! Chegámos
finalmente ao que interessa!”
Tomás riu-se.
“O que interessa está muito para lá dessas duas
histórias, acredite.”
“Isso não sei”, respondeu ela. “O que sei é que você