Выбрать главу

pôs em causa duas narrativas fundamentais da Bíblia e,

que eu saiba, ainda não apresentou uma única prova!”

“Quer provas?”

“Não estou à espera de outra coisa...”

Sentindo uma dor nos rins por causa da posição incómoda

em que se encontrava sentado, o historiador endireitou

o tronco e encheu os pulmões de ar, como se os quisesse

exercitar.

“A primeira noção que tem de ter é que, apesar de ser

muito conhecido, o episódio da adúltera encontra-se

numa única passagem, do Evangelho segundo João. Mais

exactamente, do versículo 7:53 até ao 8:12.”

Valentina arregalou os olhos.

“Mamma mia!”, exclamou, sem conter a admiração. “Você

até decorou os números dos versículos! Que crânio!”

“Minha cara, sou historiador”, sorriu ele. “Mas é

importante que perceba que esse episódio não constava

originalmente desse evangelho. Aliás, nem desse, nem de

qualquer outro. Foi acrescentado por escribas.”

A italiana esfregou o indicador no polegar, como a

pedir algo de material.

“Provas?”

“É muito simples”, disse Tomás. “A história da adúltera

não se encontra nos manuscritos mais antigos do Novo

Testamento, considerados mais fiéis ao texto original.

Só aparece nas cópias posteriores. Além disso, o estilo

de escrita difere marcadamente do existente no resto do

Evangelho segundo João, incluindo as narrativas que se

situam nos versículos imediatamente antes e depois. Por

fim, este episódio inclui um grande número de palavras

e frases que não são usadas no resto deste evangelho.

Por tudo isto, há um consenso no mundo académico de que

este trecho foi acrescentado. É uma fraude.”

A inspectora carregou as sobrancelhas.

“Ah!”, expeliu, percebendo que não tinha maneira de

contra-argumentar. “Esta agora!” Olhou para o Codex Va-

ticanus. “E como foi esse episódio ali parar?”

“Ninguém sabe. É possível que tenha sido inserido por

teólogos cristãos que, num debate com judeus sobre a

lei de Deus, se sentissem embaraçados pelas regras

divinas estabelecidas em Levítico. Não encontrando nada

em Jesus a contrariar a ordem de apedrejar as

adúlteras, inseriram esse episódio no Evangelho segundo

João.”

“Mas... mas faziam isso assim, sem mais nem menos?”

“Atenção, isto é apenas uma teoria. Naquele tempo as

pessoas acreditavam que certas ideias religiosas que

lhes ocorriam eram verdadeiras porque lhes tinham sido

implantadas na mente pelo Espírito Santo. Jesus é

citado por Marcos em 13:11 a dizer o seguinte: ‘Quando

vos levarem para serdes entregues, não vos inquieteis

com o que haveis de dizer, mas dizei o que vos for dado

nessa hora, pois não sereis vós a falar, mas sim o

Espírito Santo.’ Ou seja, acreditavam que o Espírito

Santo os guiava quando lhes vinha à cabeça um qualquer

conceito teológico. Se a inspiração não fosse divina,

como lhes poderiam ter ocorrido essas ideias? Daí até

inserir a narrativa da adúltera, que convenientemente

desautorizava uma ordem incómoda de Deus estabelecida

de maneira inequívoca em Levítico, foi um passo.” Tomás

comprimiu os lábios. “Outra hipótese é que um escriba

tivesse anotado esse episódio na margem de um

manuscrito, baseado numa qualquer tradição oral sobre

Jesus. Décadas depois um outro escriba que estivesse a

copiar o texto poderá ter achado que a anotação

marginal pertencia à narrativa e inseriu-a a meio do

Evangelho. É curioso notar que o episódio da adúltera

aparece nos diversos manuscritos em diferentes pontos

da narrativa: nuns casos em João 8:1, noutros após João

21:25, e noutros ainda em Lucas 21:38. Isso dá uma

certa credibilidade a esta hipótese.” Encolheu os

ombros. “Seja como for, o que interessa é que a

história é comprovadamente uma falsificação da Bíblia.”

Valentina fez um assobio suave.

“Quem diria!”, exclamou, balouçando a cabeça. Ergueu a

sobrancelha, de repente preocupada. “E a ressurreição

de Jesus? Porque diz que é falsa?”

O historiador folheou com cuidado o Codex Vaticanus, em

busca de uma passagem específica.

“Pelos mesmos motivos”, disse. “Neste caso estamos a

falar do Evangelho segundo Marcos. Mais precisamente

dos derradeiros versículos. O fecho deste evangelho não

constitui um trecho que pareça familiar às pessoas em

geral, mas tem grande peso na interpretação bíblica,

como já vai perceber.” Parou na última página do

Evangelho segundo Marcos. “Aqui está!”

Num movimento quase automático, a italiana inclinou-se

também sobre o manuscrito, mas o texto estava

caligrafado em grego e, quase decepcionada, teve de

aguardar a explicação do seu interlocutor.

“O final de Marcos aborda, claro, a morte de Jesus”,

explicou Tomás. “Ele foi crucificado, como sabe, e, uma

vez morto, José de Arimateia pediu o seu corpo e foi

depositá-lo num sepulcro cavado na rocha, cuja entrada

tapou com uma pedra. Ao amanhecer de domingo, Maria

Madalena, Salomé e Maria mãe de Tiago desceram ao

sepulcro para besuntar o cadáver de óleo, como era da

tradição. Quando chegaram ao local, porém, encontraram

a entrada destapada e um jovem de túnica branca sentado

à direita, que lhes disse: ‘Buscais a Jesus de Nazaré,

o crucificado? Ressuscitou, não está aqui.’ As três

mulheres fugiram do sepulcro, a tremer, ‘e não disseram

nada a ninguém porque tinham medo’.”

Valentina impacientou-se.

“Onde está a fraude?”

O académico português pousou o indicador num ponto do

texto do Codex Vaticanus, mesmo a fechar o Evangelho.

“Nos doze versículos seguintes”, disse. “Aqui, de 16:9

a 16:20. Diz Marcos que, depois de as três mulheres

fugirem apavoradas do sepulcro, Jesus ressuscitado

apareceu primeiro a Maria Madalena e depois aos

apóstolos. E disse-lhes: ‘Ide pelo mundo inteiro e

anunciai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e

for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será

condenado.’ Depois Jesus foi arrebatado para o Céu e

sentou-se à direita de Deus.”

A italiana carregou as sobrancelhas, derramando

irritação do olhar azul subitamente nublado.

“Está a insinuar que esse relato da ressurreição é uma

fraude?”

Tomás abriu os braços, num sinal de rendição.

“Não estou a insinuar nada”, apressou-se a esclarecer.

“Se Jesus ressuscitou ou não, isso é uma matéria de

convicção religiosa na qual de certeza não me meto.

Estou apenas preocupado em extrair a verdade histórica