O Codex Vaticanus.
Custava-lhe crer, mas a verdade é que o funcionário da
Biblioteca Apostólica Vaticana, agindo sob ordens do
prefetto, lhe pousara na mesa o célebre Codex
Vaticanus. Aquela relíquia de meados do século IV era o
mais
antigo
manuscrito
sobrevivente
da
Bíblia
praticamente completa em grego, o que fazia dela o
maior tesouro da Biblioteca Apostólica Vaticana. E,
vejam só, havia-lhe sido confiado, a ela. Que coisa
incrível. Alguém lá na universidade iria acreditar?
Virou a página com infinito cuidado, quase como se
receasse danificar o pergaminho, apesar de ele estar
protegido pela placa de material transparente, e
mergulhou quase instantaneamente no texto. Percorreu o
primeiro capítulo da Carta aos Hebreus; o que procurava
andava ali, perto do início. Passou os olhos pelas
linhas, os lábios a murmurarem as frases em grego como
se entoasse uma ladainha, até por fim chegar à palavra
que buscava.
“Ah, aqui está!”, exclamou. “Phanerón.”
Era extraordinário. Já lhe tinham falado naquele
vocábulo, mas uma coisa era conversar sobre o assunto à
mesa da cantina da faculdade e outra vê-lo diante dos
olhos
em
plena
Biblioteca
Apostólica
Vaticana,
desenhado por um copista do século IV mais ou menos na
altura em que Constantino adoptou o cristianismo e em
que se realizou o Concílio de Niceia, onde o essencial
da teologia cristológica ficou enfim definido. Sentia-
-se em êxtase. Ah, que sensação! Só de pensar que...
Mais um barulho.
Com um salto de susto, Patrícia voltou ao presente e
fixou a atenção de novo na Sala Inventario Manoscritti,
ali à direita, de onde mais uma vez lhe pareceu ter
vindo o som.
“Está aí alguém?”, perguntou, com voz trémula.
Ninguém respondeu. A sala parecia deserta, embora fosse
difícil ter a certeza, considerando todas aquelas
sombras e a penumbra. Será que o barulho tinha vindo da
Leonina? O grande salão da biblioteca encontrava-se
para lá da sua linha de visão, pelo que não tinha modo
de se certificar. Sob o manto da noite aquele lugar
enchia-a de calafrios.
“Signore”, chamou ela no seu italiano espanholado, em
voz alta, buscando o empregado que o prefetto havia
chamado ao serviço só para a atender. “Per favore,
signore”
O silêncio era absoluto. Patrícia ainda considerou a
possibilidade de permanecer sentada e prosseguir a
consulta do manuscrito, rodeada pelo ambiente denso
daquele lugar opressor, mas a verdade é que os sons
inesperados e o mutismo pesado que os envolvia a
enervaram. Onde diabo se metera o empregado? Quem
estaria a fazer os ruídos que ela escutara? Se era o
empregado, porque não respondia?
“Signore”
Mais uma vez, ninguém replicou. Assaltada por uma
inquietude que não conseguia explicar, a historiadora
ergueu-se com um movimento repentino, como se esperasse
que a brusquidão afugentasse o próprio medo. Tinha de
tirar aquilo a limpo. Além do mais, acrescentou para si
mesma, era a última vez que aceitaria fechar-se sozinha
numa biblioteca à noite. Sob os contornos da treva,
tudo lhe parecia sinistro e ameaçador. Ainda se tivesse
o seu Manolo ao pé dela!...
Deu uns passos e cruzou a porta, decidida a esclarecer
o mistério do desaparecimento do empregado. Entrou na
Sala
Inventario
Manoscritti,
que
se
encontrava
mergulhada na escuridão, e apercebeu-se de uma mancha
branca a seus pés. Desceu o olhar para ver o que era.
Tratava-se de uma simples folha de papel pousada no
chão.
Intrigada, ajoelhou-se e, sem pegar nela, inclinando-se
como se a quisesse cheirar, estudou-a com uma expressão
intrigada.
“Que diabo é isto?”, interrogou-se.
Nesse instante sentiu um vulto sair da sombra e tombar
sobre ela. O coração disparou com o susto e Patrícia
quis gritar, mas uma enorme mão tapou-lhe a boca com
força e tudo o que conseguiu fazer foi emitir um gemido
de horror, rouco e abafado.
Tentou fugir. Contudo, o desconhecido era pesado e
prendeu-lhe os movimentos. Virou a cabeça para tentar
identificar o assaltante. Não o conseguiu encarar, mas
apercebeu-se confusamente de algo a cintilar no ar. No
derradeiro instante compreendeu que se tratava de uma
lâmina.
Não teve porém tempo de raciocinar sobre o que lhe
estava a suceder porque sentiu uma dor lancinante
rasgar-lhe o pescoço e o ar faltou-lhe de imediato.
Tentou gritar, mas não tinha ar. Agarrou no objecto
frio que lhe furava o pescoço, num esforço desesperado
para o travar, mas ele era manejado com demasiada força
e a energia começava a esvair-se do seu corpo. Um
líquido quente jorrou-lhe sobre o peito em golfadas e,
no estertor da aflição, tomou consciência de que era o
seu próprio sangue.
Foi a última coisa em que pensou, porque de imediato a
visão se encheu de luzes e depois de escuridão, como se
um interruptor a tivesse para sempre desligado.
I
O pincel escovou a terra que ao longo dos séculos se
acumulara sobre a pedra, entranhando-se nos poros mais
minúsculos. Quando a nuvem de pó acastanhado se
desvaneceu, Tomás Noronha aproximou os olhos verdes da
pedra, à maneira de um míope, e inspeccionou o
trabalho.
“Porra!”
Ainda havia terra por retirar. Suspirou fundo e passou
as costas da mão pela testa, ganhando embalo para mais
umas escovadelas. Aquele não era decididamente o tipo
de tarefa que mais apreciava, mas resignou-se; sabia
que na vida não se faz sempre aquilo de que se gosta.
Antes de recomeçar, todavia, ofereceu a si mesmo um
momento de repouso. Rodou a cabeça e apreciou a lua
cheia lá no alto, a irradiar um halo prateado sobre a
majestosa Coluna de Trajano. A noite era sem dúvida a
altura que mais apreciava para trabalhar ali no centro
de Roma; de dia o trânsito tornava tudo caótico. O
clamor das
buzinadelas e
o
ronco
furioso
das
britadeiras revelavam-se absolutamente infernais.
Consultou o relógio. Já era uma da manhã, mas estava
determinado a aproveitar a pausa que o sono dos
automobilistas romanos lhe havia concedido durante a
noite para adiantar o máximo de trabalho. Só sairia
dali às seis da manhã, quando os carros começassem a
encravar as ruas e o concerto das buzinadelas e das
britadeiras recomeçasse. Nessa altura iria dormir ao
seu pequeno hotel na Via dei Corso.
O telemóvel tocou no bolso das calças, arrancando-lhe