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Está ferido. Pode ajudar?”

O guarda nocturno espreitou naquela direcção e

vislumbrou um vulto a contorcer-se no chão. Intrigado e

desconfiado, puxou do walkie-talkie.

“Phoenix para Eagle.”

Foram precisos dois segundos para uma voz responder no

aparelho.

“O que é, Phoenix?”

“Tenho um problema à porta da Chester”, disse. “Vou

sair e comunico de novo em trinta segundos.”

“Fico à espera, Phoenix. Over.”

O guarda trancou a porta atrás dele e caminhou em passo

rápido para o corpo estendido no chão, mas assegurando-

se de que o sem-abrigo malcheiroso se mantinha a uma

distância prudente. O guarda sabia que precisava de ser

cuidadoso e tomar todas as precauções; havia sempre a

possibilidade de tudo aquilo não passar de uma

encenação para assaltar a biblioteca.

Quando chegou junto ao vulto caído, porém, as dúvidas

desfizeram-se. O guarda nocturno reconheceu de imediato

o utente que, apenas um minuto antes, acompanhara à

porta da biblioteca.

Foi então que viu o sangue.

“My God”

Ajoelhou-se junto do ferido e localizou a ferida;

estava no pescoço e, pelo aspecto, era grave. Demasiado

grave para ele, sozinho e com os seus limitados

conhecimentos de primeiros socorros, conseguir prestar

uma

ajuda

eficiente.

A

vítima

estremecia

convulsivamente, como se estivesse atacada por uma

febre alta. Precisava de auxílio profissional. E

depressa.

O guarda nocturno colou o walkie-talkie aos lábios.

“Phoenix para Eagle.”

“O que é, Phoenix?”

“Tenho um ferido grave à porta da Chester”, disse.

“Chame imediatamente uma ambulância. É urgente.”

Largou o walkie-talkie e curvou-se de novo sobre o

ferido, que tremia descontroladamente. O guarda colou—

-lhe os dedos ao pescoço e tentou localizar a abertura

por onde jorrava todo aquele sangue, na esperança de o

estancar. Foi nesse instante que o líquido vermelho

deixou de golfar e que o tremor cessou. A sua primeira

reacção foi de alívio, mas depois olhou para o rosto da

vítima e percebeu por que razão a hemorragia e a

trepidação haviam parado.

O homem tinha morrido.

XIV

Os dois paramédicos puseram-se em posição, um a segurar

os ombros do cadáver e o outro as pernas, contaram até

três e, com um movimento sincronizado, transferiram-no

para a maca. Depois voltaram a cobrir o corpo com o

lençol e levantaram a maca, transportando Patrícia pela

biblioteca em direcção à saída.

Acocorado na ligação entre as duas salas dos

manuscritos, Tomás viu a maca passar diante dele e

desaparecer para além da porta que conduzia à Joanina.

Permaneceu um longo instante a olhar para a porta

deserta; parecia hipnotizado, mas na verdade despedia-

-se em silêncio da amiga galega.

“Que

história

é

essa

de

Maria?”,

questionou-o

Valentina, quebrando a solenidade constrangedora do

momento. “Diz você que ela é a Virgem que não é

virgem?”

O historiador apontou para a charada rabiscada no papel

que fora abandonado no chão.

Wàlwa

“É o que revela este enigma.”

A inspectora da Polizia Giudiziaria olhou interroga-

doramente para a mensagem incompreensível, tentando

perceber onde poderia o académico português ver ali uma

referência à Virgem Maria. Por mais que esquadrinhasse

aqueles gatafunhos, não conseguia destrinçar a menor

ligação.

“Como me disse há pouco, o que está aqui escrito é a

palavra alma”, lembrou. “Que eu saiba, não há nenhuma

referência à mãe de Jesus.”

Tomás apontou com o dedo para o primeiro rabisco da

mensagem, antes da palavra alma.

“Está a ver este símbolo que parece uma forquilha?”,

perguntou. “É ele a chave da descodificação desta

mensagem.”

“Porquê? O que é isso?”

“É o desenho esquemático de uma flor-de-lis.” Arqueou

as sobrancelhas, para sublinhar o significado da

descoberta. “O símbolo da pureza da Virgem Maria.”

“Ah, então a Madonna sempre é virgem!...”, exclamou

Valentina, carregada de ironia. “Pensei que tinha dito

que...”

“Calma!”, pediu Tomás, reprimindo um sorriso. “A flor-

-de-lis serve apenas para direccionar a interpretação

da palavra que está a seguir. Alma.”

A italiana cruzou os seus olhos azuis com os verdes de

Tomás.

“Então alma não remete para espíritos?”

“Não quando tem a flor-de-lis atrás. Neste caso remete-

-nos para a Virgem Maria.”

“Porque diz isso? O que está escrito aqui é alma, não é

virgem nem Maria.”

Embora se mantivesse acocorado, o historiador

endireitou o tronco para melhor se equilibrar naquela

posição.

“Sabe onde está a informação de que a mãe de Jesus era

uma virgem?”

“Na Bíblia, presumo.”

Tomás fez um V com os dedos.

“Apenas em dois evangelhos”, disse. “Mateus e Lucas.

Marcos ignora por completo a questão do nascimento de

Jesus e João diz em 1:45: ‘É Jesus, o filho de José, de

Nazaré.’ Ou seja, refere directamente que José é pai de

Jesus, afirmação que implica contradizer Mateus e

Lucas.” Ergueu o dedo. “Mas o mais importante é o

testemunho de Paulo, mais antigo que os Evangelhos. Diz

Paulo na Carta aos Gálatas, em 4:4: ‘Deus enviou o seu

Filho, nascido de mulher.’ Paulo, escrevendo mais perto

dos

acontecimentos,

pelos

vistos

esqueceu-se

de

mencionar que a dita mulher era uma virgem. Não me

parece possível que tenha achado esse pormenor

irrelevante. Uma virgem que dá à luz não é coisa

normal, pois não? Se tivesse acontecido com Maria,

decerto Paulo não se esqueceria de o mencionar. Ora se

Paulo não o refere, é porque tal nunca lhe foi dito. E

porquê? Porque provavelmente essa tradição não existia

ainda nesse tempo. Foi inventada mais tarde.”

Valentina arregalou os olhos.

“Inventada? Você é incrível! Há-de ir para o Inferno!

Como pode afirmar uma coisa dessas, Dio mio?”

Tomás indicou o papel pousado no chão.

“Por causa desta palavra”, explicou. “Alma.”

A italiana baixou os olhos para a charada e levantou-os

de novo, perdida naquela argumentação.

“Não entendo. Que quer dizer com isso?”

“A resposta a essa pergunta é-nos dada por Lucas e por

Mateus. Diz um anjo a Maria, no Evangelho segundo

Lucas, em 1:35: ‘O Santo que vai nascer há-de chamar-Se