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Santo? Foram todas imaculadas concepções?”

Valentina levou a mão à boca, estupefacta.

“Madonna!”, exclamou. “Enganaram-me este tempo todo!”

Estreitou os olhos. “E a Igreja? O que diz a Igreja

desses irmãos todos?”

Tomás sorriu.

“É um embaraço, claro!”, exclamou. “Os teólogos

cristãos puxaram pela imaginação e arranjaram várias

desculpas. Uma é que os irmãos são, na verdade, meios-

irmãos, todos filhos de José mas não de Maria. Outra é

que não se trata de irmãos, mas de primos. E outra é

que a expressão irmãos era muito abrangente e podia ser

aplicada a companheiros.”

“Ah, isso explica a filharada toda!...”

O historiador abanou a cabeça com ênfase.

“Não, minha cara”, disse. “A frase de Marcos, ‘Não é

Ele o carpinteiro filho de Maria e irmão de Tiago, de

José, de Judas e Simão? E as Suas irmãs não estão aqui

entre nós?’, torna evidente pelo seu contexto que se

está a referir a irmãos de sangue. O resto não passa de

esforços desesperados para adaptar os factos à

teologia.” Colou o indicador às têmporas. “Meta isto na

cabeça: Maria não era virgem. O relato da sua

maternidade enquanto virgem resulta de um erro de

tradução do Antigo Testamento em grego e da vontade de

Lucas e Mateus de associar Jesus às profecias de

Isaías, para reforçarem a ideia de que ele era o Filho

de Deus e sem consciência de que o trecho de Isaías que

leram em grego estava manchado por um erro de

tradução.”

Valentina bufou.

“Pois, isso encaixa.”

“E o pior é que este erro desencadeou uma sucessão de

adulterações do texto bíblico ao longo dos séculos”,

acrescentou Tomás, quase ainda no mesmo fôlego. “Por

exemplo, quando Lucas diz que José e Maria levaram

Jesus ao Templo e Simeão o identificou como o Senhor,

escreve o evangelista em 2:33: ‘Seu pai e Sua mãe

estavam admirados com o que se dizia d’Ele.”’ O

historiador fez uma careta. “Seu pai?

Como pode Lucas dizer que José é pai de Jesus se ele

nasceu de uma virgem? Confrontados com este problema,

muitos copistas alteraram o texto para ‘José e Sua mãe

estavam admirados...’ O mesmo aconteceu uns versículos

mais à frente, em 2:43, quando Lucas diz que José e

Maria ‘regressaram a casa e o Menino ficou em

Jerusalém, sem que os pais o soubessem’. Pais? José

volta aqui a ser apresentado como pai de Jesus.

Novamente os copistas corrigiram o texto, escrevendo

‘sem que José e a mãe soubessem’. Em 2:48, Maria

repreende o pequeno Jesus por ter ficado para trás,

dizendo: ‘Teu pai e eu andávamos aflitos à Tua

procura.’ Os copistas mudaram para ‘Andámos à tua

procura’, evitando assim de novo chamar a José pai de

Jesus.” Sorriu. “Enfim, estamos perante uma catadupa de

adulterações do texto original, nascidas de um simples

erro de tradução de Isaías do hebraico em grego.”

“É

incrível!”,

exclamou

Valentina.

“Absolutamente

incrível!” Ergueu o sobrolho. “É comum os autores dos

Evangelhos cometerem esses erros de tradução?”

“Mais do que os teólogos cristãos gostariam”, retorquiu

o académico português. “No Evangelho segundo João está

descrita uma conversa entre Jesus e um fariseu chamado

Nicodemo. Em 3:3, Jesus diz-lhe: ‘Quem não nascer de

novo não pode ver o Reino de Deus.’ Ao que Nicodemo

responde, no versículo seguinte: ‘Como pode nascer um

homem sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de

sua mãe e voltar a nascer?’ Jesus esclarece que não

está a falar de um nascimento pela segunda vez, mas de

um nascimento de origem divina. Este equívoco de

Nicodemo é perfeitamente natural, uma vez que a

expressão

outra

vez

tem,

em

grego,

um

duplo

significado: quer dizer uma segunda vez, mas também do

alto. Nicodemo pensava que Jesus tinha usado a palavra

no sentido de nascer uma segunda vez, mas o Messias

esclareceu que queria dizer nascer do alto, isto é,

nascer de Deus. Acontece que, a ter ocorrido, esta

conversa teria forçosamente de ter sido em aramaico, a

língua de Jesus. O problema é que, em aramaico, a

palavra outra vez não tem esse duplo sentido. O duplo

sentido existe apenas em grego. Assim sendo, esta

conversa não pode ter ocorrido. É uma invenção.”

Valentina parecia abismada.

“Mas como é possível que eu nunca tenha ouvido estas

coisas na missa?”

O historiador encolheu os ombros.

“Isso não sei”, disse, lançando um olhar de esguelha

para o contorno do corpo de Patrícia que ficara

desenhado a giz no sítio onde a historiadora fora

encontrada. “Nem isso é o que nos interessa nesta

investigação. A questão realmente pertinente é perceber

por que razão o equívoco em torno da virgindade de

Maria é abordado nesta charada.”

A italiana respirou fundo, deixando esvair-se a

irritação por só então descobrir um conjunto de coisas

que nunca ninguém lhe havia explicado sobre a sua

própria religião. O seu interlocutor tinha razão,

sabia; precisava de se concentrar no essencial. Dadas

as circunstâncias, o essencial era deslindar aquele

crime na Biblioteca Apostólica Vaticana. Tudo o resto

não passava de distracções.

“A resposta a essa questão depende de saber quem

redigiu o enigma”, retorquiu ela. “Se foi a vítima ou o

homicida. Já encomendei uma peritagem caligráfica para

determinar se a letra em que o enigma foi rabiscado é

ou não da sua amiga.” Tomás assentiu com a cabeça, a

mente a deter-se num pormenor que ainda não ficara

claro.

“Há uma coisa que gostaria que me explicasse.”

“O quê?”

“Disse-me há pouco que há uma relação entre o homicídio

e a investigação que a Patrícia estava a levar a cabo”,

recordou. “Mas não me revelou que relação é essa.”

Valentina indicou o espaço vazio onde antes se

encontrara o cadáver da historiadora espanhola.

“O assassino entrou aqui com o único fito de matar a

sua amiga.”

“Como sabe isso?”

A inspectora indicou os códices e os incunábulos que

enchiam as prateleiras da biblioteca.

“Estivemos a verificar o catálogo e não desapareceu

nada”, disse. “Logo, o roubo não foi o móbil do crime.”

Indicou a porta. “Além do mais, descobrimos o empregado

da biblioteca inconsciente no quarto de banho de

serviço. Pelos vistos o assassino não o quis matar,

apenas neutralizar. Isto significa que o intruso veio