especificamente com a missão de matar a sua amiga.”
“Ah, bom.”
“E depois há o homicídio propriamente dito.”
“O que tem ele?”
“A sua amiga foi degolada, lembra-se?”
O português estremeceu.
“Por favor, poupe-me a esses pormenores!...”
“Estes pormenores são muito importantes”, sentenciou a
inspectora da Polizia Giudiziaria. “A maior parte dos
homicídios em Itália, e, aliás, no resto da Europa, são
levados a cabo com lâminas. As vítimas são esfaqueadas
até à morte.”
“Portanto, a Patrícia foi vítima de um homicídio
comum...”
Valentina abanou a cabeça.
“Não necessariamente”, disse devagar. “Sabe, apesar da
frequência de assassínios com recurso a lâminas, a
verdade é que a degolação não é uma maneira simples de
matar alguém. As vítimas lutam muito, criam enormes
dificuldades e atrapalham as manobras necessárias. É
difícil cortar o pescoço a uma pessoa. É por isso que a
degolação constitui uma forma muito rara de homicídio.
Tão rara, aliás, que em geral só ocorre numa situação
muito específica.”
Fez uma pausa, espicaçando a curiosidade de Tomás.
“Qual?”
“Lembra-se de eu lhe ter dito que a sua amiga foi
degolada como um cordeiro?”, perguntou ela. “Essa
imagem, embora admissivelmente de gosto dúbio, é muito
feliz porque exprime com exactidão a natureza deste
tipo de crime.”
O português arqueou as sobrancelhas, sem entender onde
queria a inspectora chegar.
“Não percebo.”
Valentina fitou Tomás com intensidade.
“É que a degolação em geral é reveladora de um
homicídio ritual.”
“O quê?”
“A morte da sua amiga não foi um mero assassínio”,
sentenciou. “Foi um acto ritual.”
“Mas... mas...”
A italiana indicou o Codex Vaticanus.
“É por isso que estou convencida de que este crime está
relacionado com a investigação que ela estava a
conduzir.” Apontou para o seu interlocutor. “E é por
isso que a sua ajuda é preciosa. Estou convencida que
me poderá fornecer pistas que se revelem a chave deste
crime.”
“Eu? Mas não estou a ver o que mais possa...”
Uma voz interrompeu-os.
“Signora inspectora”, disse um homem corpulento que se
aproximara deles com um telemóvel na mão. “Dá licença?”
Valentina rodou o corpo e virou-se para ele.
“Sim, Vittorio. Que é?”
“Recebemos agora uma comunicação da polícia da
Irlanda”, disse. “Parece que houve para lá um homicídio
e querem falar consigo.”
A inspectora da Polizia Giudiziaria arregalou os olhos,
apanhada de surpresa.
“Comigo? A polícia da Irlanda? A esta hora?”
“Parece que o crime ocorreu há pouco...”
A italiana soltou uma gargalhada seca.
“Ora esta, eles falam como se eu não tivesse mais nada
que fazer!” Fez um gesto com a mão, mandando Vittorio
embora. “Diga-lhes que estou ocupada. Eles que nos
enviem um ofício segundo os trâmites normais nestes
casos.”
O polícia à paisana não se mexeu e manteve os olhos
pousados na superiora hierárquica.
“Parece que em Dublin assassinaram esta noite um
historiador”, afirmou num registo lacónico. “A polícia
da Irlanda viu o relatório preliminar que enviámos para
a Interpol e percebeu as semelhanças com o nosso caso.
Os
irlandeses
consideram
imprescindível
a
sua
colaboração. Querem que vá a Dublin o mais depressa
possível.”
A inspectora franziu o sobrolho.
“Mamma mia!”, exclamou. “São rápidos, esses
irlandeses.” Esboçou um gesto de indiferença. “Muito
bem, na mesma noite foram mortos dois historiadores. Um
no Vaticano, outro em Dublin. E depois? Será que os
irlandeses nunca ouviram falar em coincidências?” Novo
gesto com a mão, mandando o subordinado embora. “Vá,
mande-os dar uma volta. Tenho mais que fazer.”
Vittorio manteve-se ainda absolutamente imóvel; era
como se nem sequer a tivesse escutado.
“O historiador assassinado esta noite em Dublin estava
a investigar manuscritos antigos da Bíblia”, revelou no
seu tom monocórdico. “Foi degolado. Ao lado do corpo, a
polícia encontrou um papel com uma coisa estranha.”
“Estranha como?”
O polícia arqueou as sobrancelhas, sublinhando a
derradeira informação que tinha para dar.
“Uma outra charada.”
XV
Uma luz de chumbo pintava a manhã de tonalidades
tristes. O céu apresentava-se densamente nublado e o
clarão difuso do dia emprestava um azul sombrio e
deprimente àquele canto verdejante no centro de Dublin.
“Nem sei como me deixei arrastar para aqui”, queixou-
-se Tomás. “Eu devia estar a tratar das ruínas do Fórum
de Trajano!...”
Valentina Ferro lançou-lhe uma censura com o olhar.
“Outra vez a lamuriar-se?”, perguntou. “Já lhe
expliquei mil vezes que a sua colaboração é essencial
para o sucesso deste inquérito. A forma como me ajudou
a deslindar as pistas bíblicas semeadas na Biblioteca
Vaticana foi brilhante.” Juntou os dedos da mão para
cima, num gesto muito italiano. “Bri-lhan-te!”
“Está bem, mas o meu trabalho não é este...”
“O seu trabalho é colaborar com a justiça”, sentenciou
a inspectora da Polizia Giudiziaria. Encarou o
historiador e suavizou o tom das suas palavras, numa
clara mudança de táctica argumentativa. “Não quer
encontrar o assassino da sua amiga galega? Não acha que
lhe deve pelo menos isso?” Tomás sabia que o argumento
era manipulador, mas não deixava de ser válido. Devia
de facto isso a Patrícia. Como amigo dela, o mínimo que
poderia fazer era ajudar a polícia a encontrar o
assassino. Que raio de amigo seria ele se nem a uma
coisa
dessas
estivesse
disposto?
Se
a
polícia
solicitava a sua colaboração, era de facto seu dever
oferecê-la. Como a poderia recusar?
“Tem razão”, concedeu por fim, conformando-se com a
situação. “É só que eu...”
“Inspectora Ferro?”
Um homem de cabelo grisalho e gabardina creme, imagem
acabada de um detective, aproximou-se dos dois recém-
-chegados com uma pasta de cartolina verde na mão.
“Sim, sou eu”, disse Valentina. “E este é o professor
Tomás Noronha, que nos está a ajudar a investigar o
homicídio no Vaticano.”
O desconhecido estendeu a mão para os cumprimentar.
“Sou o superintendente Sean O’Leary”, identificou-se.