“Inspector do NBCI, o National Bureau of Criminal
Investigation da An Garda Síochána, a polícia da
República da Irlanda. Fui eu que pedi a vossa presença
aqui em Dublin.” Abriu o rosto num sorriso acolhedor.
“Sejam bem-vindos. A viagem foi boa?”
“Normal”, retorquiu Valentina com indiferença; tinha
mais
que
fazer
do
que
alimentar
conversa
de
circunstância. “Pelo que me disseram do vosso caso
existe uma extraordinária semelhança com o nosso. Acha
mesmo que estão relacionados?” O superintendente
O’Leary devolveu-lhe o olhar, como se considerasse a
resposta evidente.
“O que acha?”
A italiana encolheu os ombros.
“Não sei. Explique-me o que aconteceu e logo lhe
direi.”
O superintendente do NBCI indicou com o polegar o
edifício atrás dele; era uma construção de traça
moderna, encravada entre dois edifícios de linhas
clássicas.
“Esta é a Chester Beatty Library, uma biblioteca
fundada com o espólio de um magnata do sector mineiro”,
disse. Retirou da sua pasta de cartolina verde a
fotografia de um sexagenário de porte elegante e olhos
pálidos. “Acontece que um historiador holandês, um tal
Alexander
Schwarz,
professor
de
Arqueologia
da
Universidade de Amesterdão e colaborador da Biblical
Ar- chaeology Review, veio cá consultar uns manuscritos
antigos da Bíblia.” Fez com a cabeça sinal para o
edifício. “Parece que esta biblioteca tem umas coisas
com um certo valor...”
Tomás sorriu com a observação.
“Umas coisas?”, perguntou com sarcasmo. “O espólio de
Bíblias da Chester Beatty Library é melhor que o do
Vaticano!”
“O quê?”, admirou-se Valentina. “Está a brincar!...”
“A sério!”, insistiu o historiador, apontando para o
edifício. “Oiça, esta biblioteca guarda dois grandes
tesouros. Um é o P45, o mais antigo exemplar quase
completo do Novo Testamento que jamais foi encontrado.
Trata-se de um manuscrito em pergaminho e escrito em
letras minúsculas. Recua ao século III. O P45 é ainda
mais antigo do que o Codex Vaticanus.
“Dio mio!'"
“E esta biblioteca guarda também o P46, a mais antiga
cópia quase completa das Epístolas de Paulo. Este
pergaminho foi redigido no ano 200, veja lá. Isto
significa que o P46 foi escrito pouco mais de cem anos
depois da morte de Paulo. É talvez o mais antigo texto
do Novo Testamento que chegou até nós.” Fez um gesto no
ar. “Consegue calcular o valor destas preciosidades? À
falta dos originais e das cópias iniciais, estes
pergaminhos são o que temos de mais próximo dos
primeiros manuscritos do Novo Testamento.” O polícia
irlandês afinou a voz, dando sinal de que tinha coisas
pertinentes para dizer.
“Tem graça que mencione esses dois documentos”,
observou, extraindo um bloco de notas do bolso. “É que
o professor Schwarz veio cá justamente para os
consultar.” Verificou as cotas dos textos nas suas
anotações. “Passou a noite a estudar as reproduções em
computador do P45 e requisitou para esta tarde a
consulta do P46.”
“E então?”, impacientou-se a italiana. “Que lhe
aconteceu?” O superintendente O’Leary passou os olhos
nos seus apontamentos.
“Alegando urgência no seu trabalho, o professor Schwarz
obteve uma autorização especial para trabalhar durante
a noite, fora do horário normal de expediente. Por
volta das três da manhã terminou a consulta do P45 e
despediu-se do funcionário encarregado de o acompanhar.
O guarda nocturno abriu-lhe a porta e deixou-o sair.
Depois voltou para o seu lugar e diz que não viu nada
de anormal.” Virou a folha do bloco de notas. “Um
minuto mais tarde apercebeu-se de um homeless aos
berros e aos murros ao vidro da porta. O guarda
nocturno foi ter com ele para o mandar embora. Foi
nessa altura que avistou o corpo do professor Schwarz
no chão.” Indicou um ponto protegido por fitas
instaladas pela polícia. “Ali. Foi ter com ele e
apercebeu-se de que ainda estava vivo. Pediu ajuda à
central de segurança, mas quando os paramédicos cá
chegaram já não havia nada a fazer. O professor tinha
morrido.”
“Esse
homeless”,
disse
Valentina,
atenta
aos
pormenores, “viu alguma coisa?”
“Parece que sim.” Folheou o bloco, em busca das
anotações da testemunha. “Repetiu a mesma frase aos
paramédicos. ‘Foi um acidente’, disse ele. ‘Foi um
acidente.’”
“Um acidente? Um acidente como?”
“Foi o que ele disse aos paramédicos.”
“E a vocês? O que vos disse ele?”
O irlandês corou e baixou os olhos,
“Pois... enfim, ainda não falámos com esta testemunha.”
A inspectora da Polizia Giudiziaria esboçou um esgar
intrigado.
“E estão à espera de quê?”
O homem do NBCI permaneceu embaraçado, incapaz de a
encarar de frente.
“Adormeceu”, murmurou. “Parece que estava embriagado.
Os paramédicos insistiram em levá-lo para o hospital e
só esta tarde o poderemos interrogar.”
Valentina assentiu com a cabeça. Reflectiu um momento e
indicou o local onde o corpo do professor Schwarz havia
tombado.
“E a vítima? Qual a causa do óbito?”
O superintendente O’Leary passou o dedo pelo pescoço,
num gesto universal.
“Degolação.”
Tomás e Valentina trocaram um olhar. Tudo indicava
tratar-se
de
um
novo
homicídio
ritual,
em
circunstâncias semelhantes às do assassínio ocorrido na
noite anterior na Biblioteca Vaticana. Não podia de
facto ser coincidência. A inspectora da Polizia
Giudiziaria suspirou.
“Estamos, pois, perante um assassino em série”,
observou, pensando em voz alta. “Alguém que mata
historiadores
especificamente
envolvidos
em
investigações com manuscritos antigos da Bíblia. E que
sente necessidade de praticar assassínios rituais.” Fez
com as mãos um gesto a simular uma pistola. “Podia dar-
lhes um simples tiro. Era rápido, limpo e fácil. Mas
não. Degola-os como cordeiros.” Fitou o seu homólogo
irlandês. “Porquê?”
O’Leary fez um gesto de ignorância.
“Não faço ideia”, disse. “Estava à espera que me
pudesse ajudar. Vi o relatório preliminar que vocês
enviaram à Interpol e percebi que estávamos perante o