mesmo caso. Penso que temos de cooperar para o
resolver.”
“Isso é evidente”, concordou Valentina. “Disseram-me
que, tal como aconteceu no Vaticano, também aqui foi
encontrado um papel com uma charada. Isso tem algum
fundamento?” O homem do NBCI irlandês retirou mais uma
fotografia da pasta verde que trazia na mão.
“Está a referir-se a isto?”
Os dois recém-chegados inclinaram-se para a imagem. A
foto mostrava um papel amarrotado com uma série de uns
e quatros alternadamente rabiscados a negro.
“Exactamente como no Vaticano”, constatou Valentina.
“Agora é uma nova mensagem.”
“O que significa isto?”, quis saber o irlandês.
“A noite passada tive muitas dúvidas a propósito do
enigma que encontrámos no chão da Biblioteca Vaticana”,
indicou a inspectora da Polizia Giudiziaria. “A charada
podia ter sido uma brincadeira da própria vítima, algo
que ela escrevera enquanto trabalhava e que tombou no
chão no momento em que foi morta. Ou poderia ser uma
assinatura deixada pelo assassino.” Apontou para a
fotografia. “Mas se o mesmo tipo de charada aparece
horas depois num homicídio semelhante perpetrado a
milhares de quilómetros de distância, isso só pode
significar que a resposta verdadeira é a segunda.”
O’Leary olhou para a fotografia que tinha na mão.
“Ou seja, isto é uma assinatura do assassino!’
Tomás
posicionou-se
ao
lado
do
superintendente
irlandês, de modo a melhor observar a imagem. Não
precisou de mais de dois segundos para formar opinião.
“Ou algo diferente”, sugeriu, metendo-se na conversa.
“Uma mensagem.”
Os dois polícias voltaram-se para ele, os rostos
contraídos numa expressão inquisitiva.
“Parece-lhe
mesmo?”,
perguntou
a
italiana.
“Uma
mensagem? Sente-se capaz de a decifrar?”
O historiador pegou na fotografia e analisou com
atenção a sequência de algarismos.
“Já o fiz.”
“Ai sim? E o que é?”
Tomás estudou a imagem por alguns segundos mais. Depois
levantou
a
face
e
sorriu
com
timidez,
quase
envergonhado por ser portador de uma nova revelação que
a italiana não iria decerto apreciar.
“Mais uma coisa embaraçosa do Novo Testamento, receio
bem.”
XVI
O trânsito à entrada da cidade revelou-se intenso,
embora fluido. Os blocos de apartamentos pareciam
verdadeiros caixotes cinzentos e monolíticos; tinham um
aspecto vagamente decadente, como era imagem de marca
da construção da era soviética. Além disso, pairava no
ar um certo cheiro a óleo queimado, um pouco
desagradável,
e
o
barulho
lá
fora
mostrava-se
desagradavelmente invasivo.
Incomodado, Sicarius premiu o botão com uma seta para
cima e o vidro eléctrico do automóvel emitiu um zumbido
prolongado enquanto a janela se fechava. Já isolado dos
ruídos e dos odores exteriores, encostou o carro à
berma, pegou no telemóvel e digitou o número.
“Cheguei, mestre!”, anunciou logo que o destinatário
atendeu. “Estou à espera de instruções.”
A pessoa do outro lado da linha fez um ruído de
mastigação; deveria estar a comer.
“Fez boa a viagem?”
“Longa.”
Ouviu-se o som de talheres a tilintarem em loiça e
depois papéis a serem remexidos.
“Tenho informações sobre o teu novo alvo”, disse o
mestre, dirigindo-se ao assunto sem mais delongas.
“Entrou na faculdade às nove da manhã em ponto para dar
aulas. Ao meio-dia termina a lição e vai direito para
casa, onde entrará ao meio-dia e vinte e dois.”
“Entra em casa ao meio-dia e vinte e dois?”, estranhou
Sicarius. “Nem um minuto mais tarde? Como pode estar
tão seguro disso?”
A voz soltou uma gargalhada.
“Parece que o nosso amigo é um tipo de hábitos
rígidos”, explicou. “Há colegas da faculdade que
acertam o relógio pela passagem dele. Tudo o que faz é
previsível.’’’’
Sicarius fungou.
“Perfeito”, disse. “Assim é mais fácil.”
“Eu sabia que ias gostar”, ronronou a voz ao telefone.
“Mas não facilites, ouviste? Assegura-te de que não
haverá complicações. Quero tudo a correr sobre rodas,
como até aqui. Avança apenas quando for seguro.”
“Esteja descansado, mestre.”
“Bom trabalho!”
Sicarius desligou e guardou o telemóvel no bolso das
calças. Pegou no seu caderno, consultou as anotações e
identificou a morada que procurava. Era em Stariot
Grad. Identificou o local no mapa da cidade e a seguir
introduziu o endereço no sistema de GPS do carro.
Concluída a operação, ligou o pisca-pisca para a
esquerda, sinalizando que ia retomar a marcha, e
espreitou o trânsito pelo retrovisor lateral; vinham
vários automóveis a passar, não tinha possibilidade de
arrancar de imediato.
Lançou por isso uma espreitadela à mala de couro negro
que trazia no lugar ao seu lado. A mala estava aberta,
exibindo o conteúdo como se fosse um passageiro
silencioso.
A adaga sagrada.
XVII
Um delicioso aroma a especiarias e uma fragrância
quente de café enchiam o espaço junto ao átrio ocupado
pelo restaurante da Chester Beatty Library. Os três
visitantes acomodaram-se a uma mesa da esplanada do
Silk Road Café, situado na torre do relógio, e Tomás
apreciou a magnífica vista para o jardim do Castelo de
Dublin. Pediram chá de camomila, doces baclava e
kataif, panquecas libanesas recheadas de nozes e coco,
muito recomendadas pelo empregado, mas a ementa que os
levava ali era o crime cometido nessa madrugada às
portas da biblioteca.
Logo que o empregado se afastou, o historiador
português fez sinal para a pasta de cartolina verde que
Sean O’Leary havia pousado no chão, junto à cadeira.
“Mostre-me aí a fotografia da charada.”
O irlandês inclinou-se, apanhou a pasta e retirou a
fotografia, que entregou a Tomás. Nesse instante
apareceu um polícia fardado que chamou O’Leary. O
superintendente trocou umas palavras com ele e voltou-
se para os seus convidados.
“Queiram desculpar”, disse. “O dever chama-me.”
O’Leary afastou-se, deixando Tomás e Valentina a sós. O
académico estudou a fotografia da charada e deteve-se
demoradamente na sequência alternada de uns e quatros,
como se quisesse confirmar a sua conclusão preliminar.
“Então?”, impacientou-se Valentina. “O que é isso?”