Foi a vez de Tomás se inclinar no seu lugar e retirar
de um saco de plástico um livro volumoso que havia
comprado à chegada numa livraria do aeroporto de
Dublin. A italiana espreitou a capa e viu o título.
A Bíblia.
“Os únicos evangelhos que dão a genealogia de Jesus são
o de Mateus e o de Lucas”, disse o historiador,
folheando o livro. “O que é interessante é que são
ambas feitas a partir da linha genealógica de José. O
que é intrigante, não acha?”
“Com efeito”, admitiu ela. “Se José não era o pai
biológico de Jesus, como estabelecem esses dois
evangelhos, por que motivo fizeram a genealogia de
Jesus a partir dele?” Indicou a Bíblia. “Não há
genealogia feita a partir da linha de Maria?”
“Não, apenas de José”, esclareceu Tomás. “A outra coisa
interessante é que as genealogias apresentadas por
Mateus e por Lucas, embora acompanhem a ascendência de
José, são diferentes uma da outra.” Fixou o livro na
primeira página do primeiro dos Evangelhos. “Mas apenas
nos vamos ocupar da genealogia delineada no Evangelho
segundo Mateus.”
“Porquê essa?”
O
académico
indicou
a
fotografia
deixada
pelo
superintendente O’Leary.
“Porque é esta genealogia que nos irá conduzir à
decifração da charada deixada pelo assassino.” Afinou a
voz e colou os olhos à linha inicial do texto. “O
primeiro versículo deste evangelho começa assim:
‘Genealogia de Jesus, filho de David, filho de
Abraão.”’
“Filho de David?”, surpreendeu-se Valentina. “Não é de
José?”
“Já lá vamos”, retorquiu Tomás, fazendo sinal à sua
interlocutora de que tivesse paciência. “O segundo
versículo deste evangelho traça a linhagem a partir de
Abraão: ‘Abraão gerou a Isaac; Isaac gerou a Jacob;
Jacob gerou a Judá e a seus irmãos...’, e assim
sucessivamente até chegar a Jessé e dizer: ‘Jessé gerou
o rei David.’ Depois recomeça, dando a linhagem a
partir de David. ‘David, da mulher de Urias, gerou a
Salomão;
Salomão
gerou
a
Roboão...’
e
assim
consecutivamente até desembocar na deportação para a
Babilónia. O texto retoma novamente a linhagem e a
sucessão de nomes acaba por chegar a Jacob, terminando
assim: ‘Jacob gerou a José, esposo de Maria, da qual
nasceu Jesus, que se chama Cristo.’ ” “E assim se liga
Jesus genealogicamente a David e a Abraão.”
“Nem mais”, murmurou o historiador, a atenção retida no
texto bíblico. “Agora repare no que está escrito no
versículo 17 deste primeiro capítulo do Evangelho
segundo Mateus. ‘De sorte que todas as gerações, desde
Abraão até David, são catorze gerações. De David até ao
desterro de Babilónia, catorze gerações; e, desde o
desterro de Babilónia até Cristo, catorze gerações.’ ”
Ergueu o rosto e fitou a sua interlocutora, esperando
que ela tirasse as suas próprias conclusões. Os olhos
de Valentina desviaram-se para a fotografia da charada
encontrada junto ao corpo da vítima dessa madrugada.
“Catorze, catorze, catorze”, disse a italiana com a
cadência mecânica de um autómato. Levantou a cabeça e
encarou o historiador, os olhos arregalados. “É
incrível! Acertou outra vez!” Bateu palmas e sorriu.
“Bravo!”
O rosto cansado de Tomás abriu-se num vasto sorriso.
“Obrigado.”
“O assassino estava a chamar a atenção para esse
versículo do Novo Testamento!”, observou. Passada a
excitação inicial, contudo, a sombra de uma dúvida
atravessou-lhe o olhar. “Muito bem, já percebi a
ligação entre a charada e a Bíblia. Mas, ao colocar
este enigma junto ao corpo da vítima, o que queria o
tipo dizer exactamente? Qual o significado disso?”
O dedo do historiador bateu no texto que reproduzia o
Evangelho segundo Mateus.
“Estes
versículos
incidem
na
numerologia
da
ancestralidade de Jesus”, disse. “Repare, temos aqui
catorze gerações entre Abraão e David, o maior dos reis
de Israel. Seguem-se mais catorze gerações entre David
e a escravização dos judeus na Babilónia, o que
corresponde ao fim do primeiro templo. E depois mais
catorze gerações entre a Babilónia e Jesus.”
“E então?”
“Não percebe? Mateus está a dizer-nos que, de catorze
em catorze gerações, há um evento de importância
transcendente na vida dos judeus. Ao fim das primeiras
catorze gerações surge David, ao cabo das segundas
catorze gerações acontece o fim do primeiro templo e a
consequente escravização na Babilónia. O que quer dizer
que Jesus, que surge catorze gerações depois da
Babilónia, é também um acontecimento de importância
transcendente.”
“O que é uma evidência”, sentenciou Valentina. “Jesus
foi um acontecimento transcendente.”
“Não discuto a fé de ninguém”, declarou Tomás. “Mas
permito-me salientar vários erros cometidos por Mateus.
O primeiro é que o último grupo de catorze gerações só
contabiliza treze. Pelos vistos Mateus não sabia
contar. O segundo erro é que a contabilidade de Mateus
também não bate certo com a do Antigo Testamento.
Mateus diz em 1:8 que Jorão é o pai de Ozias.” Recuou,
de uma assentada, centenas de páginas no seu exemplar
da Bíblia. “Mas consultando as Crónicas, no Antigo
Testamento, descobrimos em 3:10 que Jorão não é o pai
de Ozias, mas o trisavô! Ou seja, Mateus fez
desaparecer três gerações.”
Valentina pegou na Bíblia e contou as gerações no
primeiro livro das Crónicas. Depois verificou o que
estava escrito no Evangelho segundo Mateus.
“Tem razão”, confirmou. “Porque aconteceu isso?”
“Não é evidente?”, perguntou o académico português num
tom retórico. “Se incluísse todas as gerações, Mateus
não tinha modo de demonstrar que ocorria um evento de
importância
transcendente
de
catorze
em
catorze
gerações. O que fez ele para resolver o problema?
Aldrabou a contagem.”
A italiana emitiu com a língua um estalido agastado; a
associação da palavra aldrabou com a Bíblia não era
manifestamente do seu agrado.
“Oh, não diga isso!”
“Não tenhamos medo das palavras só porque estamos a
falar da Bíblia”, insistiu Tomás. “Mateus adulterou
intencionalmente a contabilidade das gerações para