forçar um efeito numerológico. Precisava que a conta
desse catorze gerações e por isso subtraiu as que
estavam a mais.”
Não havia maneira de contra-argumentar, pelo que a
inspectora da Polizia Giudiziaria optou por ignorar o
assunto. Fez um gesto para a fotografia deixada por
O’Leary.
“Acha que era isso o que o homicida estava a tentar
demonstrar? Que o Evangelho segundo Mateus fez uma...
enfim, uma engenharia com a genealogia de Jesus?”
“Sim, mas por outros motivos. Sabe, o algarismo sete é
considerado na Bíblia o número perfeito. Não foi Deus
que descansou ao sétimo dia? Assim sendo, o que é o
catorze senão o sete em duplicado? No contexto
genealógico, catorze é a perfeição a dobrar.”
“Estou a entender.”
Tomás voltou a bater com o indicador nos versículos
iniciais do primeiro evangelho.
“A genealogia de Mateus destina-se a sublinhar o
estatuto de Jesus como o rei de Israel previsto pelas
Escrituras. Em Samuel l1, os cronistas judaicos afirmam
que Deus disse a David em 7:16: ‘Tua casa e teu reino
permanecerão eternamente, e o teu trono será firme para
sempre.’ Ou seja, o trono seria sempre ocupado por um
descendente de David. Porém, e devido às vicissitudes
da história, já não havia um descendente de David no
trono. Deus, no entanto, tinha prometido que haveria.
Como resolver este paradoxo? Mateus dá uma solução:
Jesus. Quem é o Jesus apresentado por este evangelista?
É descendente de David por via de duas sequências de
catorze gerações, o duplo número perfeito.” Pegou numa
caneta e pôs-se a rabiscar num guardanapo de papel com
o logotipo do Silk Road Café. “Nas línguas antigas, as
letras do alfabeto tinham valores numéricos e eram
numeradas. Em hebraico, por exemplo, as três primeiras
letras são o alef, o beth e o guimel, não é? Pois o
alef vale um, o beth vale dois, o guimel vale três, e
assim sucessivamente.
Chama-se a isso guematria.” Pegou de novo na caneta. “O
nome David escreve-se com estas três letras.”
Grafou D-V-D no guardanapo, o que suscitou a estranheza
dos dois polícias.
“DVD?”, admirou-se Valentina. “Faltam duas letras!...”
“No hebraico não se escrevem as vogais”, esclareceu o
historiador. “David fica DVD.” Atribuiu algarismps às
letras. “O valor do D, ou daleth em hebraico, é quatro,
e o valor do V, ou waw, é seis. Assim sendo, D-V-D é
daleth-waw-daleth, ou quatro-seis-quatro. Quanto dá a
soma destes três algarismos?”
“Catorze.”
Tomás confirmou a conta no guardanapo, desenhando no
final um gordo 14, e mostrou o resultado à sua
interlocutora.
“Ou seja, a guematria do nome de David é catorze, o
duplo número perfeito”, enunciou. “Foi esta a razão
pela qual Mateus arrumou a genealogia de Jesus em três
grupos de catorze. O evangelista queria associar Jesus
a David por laços de sangue, cumprindo assim a promessa
divina que consta em Samuel 11.” Ergueu um dedo, como
se
lhe tivesse
ocorrido
uma ideia.
“Aliás,
é
interessante notar uma outra coisa. Ao longo de todo o
Novo Testamento, Jesus é apelidado de Filho de Deus. O
que significa essa expressão?” A italiana fez um esgar
de admiração, como se a resposta fosse óbvia.
“Não é evidente?”, questionou. “Filho de Deus significa
que Jesus é Deus Filho.”
O historiador sorriu e abanou a cabeça.
“É um facto que essa expressão é hoje associada à ideia
de que Jesus é Deus na terra. Mas ela não tem
originalmente esse sentido. A sua origem encontra-se em
Salmos, cuja autoria a tradição atribui a David. Diz
David no versículo 2:7: ‘Divulgarei o decreto do
Senhor. Ele disse-me: «Tu és meu filho, hoje mesmo te
gerei.»’ Ou seja, e sem nunca reivindicar qualquer
estatuto divino, David apresenta-se como o Filho de
Deus. Então o que fazem os evangelistas? Chamam a Jesus
o Filho de Deus. Com essa expressão não estão a afirmar
que Jesus é um deus, ou o Deus Filho, como agora se
pretende, mas que é descendente de David, condição
essencial para reclamar o trono de Israel. É nesse
sentido que os Evangelhos lhe chamam Filho de Deus.”
Os dedos de Valentina baquetearam pela mesa numa
cadência ritmada, enquanto ela tirava as consequências
do que acabara de escutar.
“Já percebi essa parte”, afirmou. “Mas agora explique-
me uma coisa: o que queria o homicida dizer realmente
quando deixou essa charada? Isso é o que não
compreendo!...”
O historiador inclinou a cabeça e lançou-lhe um olhar
simuladamente admirado.
“Ainda não percebeu?”, perguntou. “O nosso amigo está a
marcar os homicídios com pistas sobre as fraudes no
Novo Testamento.”
A italiana revirou os olhos, esforçando-se por conter a
irritação.
“Madonna!”,
protestou.
“Lá
vem
você
com
essas
palavras... desagradáveis. De que tipo de... enfim, de
problemas da Bíblia estamos agora a falar? Novamente de
erros?”
Com a caneta a girar entre os dedos, Tomás ponderou a
questão.
“Não são bem erros”, disse devagar, como se ainda
estivesse a pensar no problema. Fez uma curta pausa.
“Sabe, para lhe poder explicar o significado profundo
da questão suscitada por esta charada vou ter de lhe
revelar algo que a chocará.”
Se tivesse um cinto de segurança, Valentina tê-lo-ia
posto nesse momento. À luz das coisas que já tinha
escutado, pressentia que o que aí vinha não era
agradável.
“Diga lá.”
O académico acariciou a capa do seu exemplar da Bíblia.
“Não existem textos de ninguém que tenha conhecido
Jesus pessoalmente.”
A italiana arregalou os olhos.
“Ai não? Essa agora! Então e os evangelhos de Marcos,
Lucas, Mateus e João?”, contra-argumentou. “Não foram
eles testemunhas dos acontecimentos?”
Tomás coçou a ponta do nariz e baixou os olhos, como se
se sentisse embaraçado por desfazer mais um mito.
“Minha cara”, disse, “ao contrário do que está escrito
na Bíblia, Marcos, Lucas, Mateus e João não escreveram
os Evangelhos.” Fez uma pausa. “E a maior parte dos
textos que aparecem no Novo Testamento são pseudo-
epígrafos.”
“Pseudo... quê?”
“Pseudo-epígrafos”, repetiu o académico. “Um nome
pomposo que se arranjou para não chamar os bois pelos
nomes. Diz-se pseudo-epigrafia e evita-se assim usar