uma expressão inquisitiva. Àquela hora? Quem diabo lhe
ligaria à uma da manhã? Verificou o visor do telemóvel
e, depois de identificar o autor da chamada, premiu o
botão verde.
“Que se passa?”
A voz da mãe soou-lhe no aparelho no habitual queixume
inquieto.
“Filho, quando é que vens para casa? Olha que já se faz
tarde!..."
“Ó mãe, já lhe disse que estou no estrangeiro”,
explicou Tomás, enchendo-se de paciência; era a
terceira vez que lhe dizia o mesmo nas últimas vinte e
quatro horas. “Mas na próxima semana estou de regresso,
está bem? Vou logo visitá-la aí a Coimbra.”
“Onde estás tu, rapaz?”
“Em Roma.” Teve vontade de acrescentar que era a
milésima vez que o repetia, mas conteve a irritação.
“Fique descansada, logo que volte a Portugal vou vê-
la.”
“Mas o que estás tu a fazer em Roma?”
A limpar pedras, apeteceu-lhe responder. E não estaria
a mentir, considerou, lançando um olhar ressentido ao
pincel.
“Vim ao serviço da Gulbenkian”, acabou por esclarecer.
“A fundação está envolvida no restauro das ruínas do
fórum e dos mercados de Trajano, aqui em Roma, e vim
acompanhar os trabalhos.”
“Mas desde quando és tu arqueólogo?”
Ora aí estava uma boa pergunta! Apesar do Alzheimer que
por vezes lhe nublava o discernimento, a mãe fizera uma
pergunta bem certeira.
“Não sou. Acontece que o fórum tem duas grandes
bibliotecas e, já sabe como é, quando se fala em livros
antigos...”
A conversa não durou muito e, no instante em que
desligou, Tomás sentiu-se acossado por um sentimento de
culpa por quase se ter irritado durante o telefonema. A
mãe não tinha responsabilidade nenhuma pelos acessos de
amnésia provocados pela doença. Umas vezes melhorava e
outras piorava; ultimamente andava pior e fazia mil
vezes as mesmas perguntas. Os seus lapsos de memória
tornavam-se
enervantes,
mas
teria
de
ter
mais
paciência.
Pegou de novo no pincel, aproximou-o da pedra e voltou
a escovar. Quando viu a nuvem libertar-se daquele
pedaço de ruínas pensou que, à maneira de um mineiro,
deveria estar já com os pulmões carregados do miserável
pó castanho que se entranhara por toda a parte. Da
próxima vez traria uma máscara, como as dos cirurgiões.
Ou talvez o melhor fosse escapar àquele trabalho e
dedicar-se aos relevos que decoravam a Coluna de
Trajano. Levantou os olhos para o monumento. Sempre
tivera curiosidade de observar as cenas de campanha na
Dácia, gravadas na coluna e que apenas conhecia dos
livros. Já que ali estava, porque não estudá-las ao
vivo e de perto?
Escutou um burburinho atrás dele e virou a cabeça. Viu
o responsável pelas obras de restauro, o professor
Pontiverdi, falar alto com um homem engravatado e, com
gestos espalhafatosos e uma voz estridente, mandá-lo
ficar quieto. Depois aproximou-se de Tomás e esboçou um
sorriso obsequioso. “Professore Norona...”
“Noronha”, corrigiu Tomás, divertido por ninguém
conseguir acertar com a pronúncia correcta do seu nome.
“Diz-se nhe, como em bagno.”
“Ah, certo! Noronha!”
“Isso!”
“Mi dispiace, professore, mas está ali um polícia que
insiste em falar consigo.”
O olhar de Tomás desviou-se para o homem engravatado
que permanecia a uns dez metros de distância, entre
duas paredes em ruínas, o perfil recortado pelos
holofotes que haviam sido instalados para iluminar o
fórum; não parecia um agente da autoridade, talvez por
não se encontrar de uniforme. “Aquilo é um polícia?”
“Da Giudiziaria.”
“Para mim?”
“Oh, é muito desagradável. Tentei mandá-lo embora,
claro, e disse-lhe que não são horas para se incomodar
ninguém. É uma da manhã, Dio mio! Mas o idiota insiste
em falar consigo e já não sei o que lhe faça. Diz que é
de suprema importância, que é urgente, que isto e que
aquilo.” Inclinou o rosto e estreitou os olhos.
“Professore, se não o quiser atender, é só dizer.
Falarei com o ministro, se for preciso! Falarei até com
o presidente! Mas a si ninguém o incomodará.” Fez um
gesto pomposo apontando em redor. “Trajano deu-nos esta
obra maravilhosa e o senhor está a ajudar-nos a
recuperá-la. O que são os insignificantes assuntos da
polícia ao pé de coisa tão magnífica?” Quase colou o
indicador ao nariz de Tomás. “Falarei com o presidente,
se for preciso!”
O historiador português soltou uma curta gargalhada.
“Calma, professor Pontiverdi. Não tenho problema nenhum
em falar com a polícia. Ora essa!”
“Veja lá, professore! Veja lá!” Apontou com vigor para
o homem engravatado, o tom de voz já inflamado. “Olhe
que não me custa nada mandar aquele imbecille, aquele
cretino, aquele stronzo, para o raio que o parta!”
O polícia à paisana empertigou-se lá ao fundo.
“Está-me a chamar imbecille a mim? A mim?”
O arqueólogo italiano voltou-se para o polícia, o corpo
a estremecer de justa indignação, os braços a
gesticularem num frenesim, a mão acusadora a estender-
-se uma e outra vez na sua direcção.
“Sim, seu energúmeno! A si! A si! Imbecille! Cretino!”
Vendo a discussão começar a ficar fora de controlo,
Tomás puxou o professor Pontiverdi.
“Calma! Calma!”, disse, da forma mais conciliadora que
pôde. “Não há problema nenhum, professor. Eu falo com
ele. Não há drama.”
“A mim ninguém me chama imbecille”, protestou o
polícia, o rosto rubro de fúria, bramindo no ar o punho
cerrado e ameaçador. “Ninguém!”
“Imbecille!”
“Calma!”
“Stupido!”
Percebendo que não conseguiria travar a ira já
descontrolada do arqueólogo italiano, e vendo o polícia
a empertigar-se com a altercação, Tomás dirigiu-se
apressadamente para o homem engravatado. Esquivando-se
do chorrilho de insultos que os dois interlocutores
trocavam como de uma corrente invisível que jorrava
pelo ar, agarrou no polícia e arrastou-o para fora
dali.
“O senhor queria falar comigo?”, perguntou enquanto o
puxava pelos ombros, esforçando-se por quebrar o fluxo
da discussão. “Então venha daí.”
O polícia à paisana ainda soltou mais dois insultos na
direcção do professor Pontiverdi, ambos aos berros e a
esbracejar com profusão, mas deixou-se levar.
“Ah, porca miséria!”, desabafou logo que se voltou para
o português. “Quem pensa aquele... aquele scemo que é?
Ora já viu isto? Mamma mia! Que atrasado mental!”