Logo que sentiu que haviam ganho uma distância segura e
já não havia risco de a discussão ser retomada, Tomás
estacou junto à Via Biberatica e encarou o visitante.
“Então diga lá. O que quer de mim?”
O polícia respirou fundo e recuperou o fôlego, ainda a
recompor-se da discussão. Tirou um bloco de notas do
bolso e passou os olhos pelas anotações enquanto
ajeitava a gola do casaco.
“O senhor é o professore Tomás Noronha, da Universidade
Nova de Lisboa?”
“Sim, sou eu mesmo.”
O polícia encarou as escadas de madeira que ligavam as
ruínas do Fórum de Trajano à rua, situada no plano
superior, e fez com a cabeça sinal para se porem a
caminho.
“Tenho ordens de o levar para o Vaticano.”
II
Uma azáfama inesperada dominava a Praça Pio XII, mesmo
em frente à Praça de São Pedro e à sua imponente
basílica iluminada. Embora fosse um lugar habitualmente
tranquilo àquela hora da noite, um bulício frenético
animava o espaço diante do Vaticano. Havia vários
carros azuis da polícia e uma ambulância estacionados
na Pio XII com as luzes azuis de emergência a girar nos
tejadilhos, como faróis acelerados, embora mantendo-se
em silêncio. Algumas pessoas formigavam em redor; umas
eram carabinieri e outras, de bata branca, pareciam
paramédicos.
“O que se passa?”
O polícia à paisana ignorou a pergunta, a exemplo do
que havia feito durante a curta viagem pelas ruas
desertas de Roma. Claramente, a discussão com o
professor Pontiverdi nas ruínas do Fórum de Trajano
tinha-o deixado maldisposto e com pouca vontade de
esclarecer as dúvidas do seu acompanhante.
O Fiat anónimo da polícia acelerou pela Via di Porta
Angélica e, com uma travagem brusca, estacionou aos pés
das muralhas altas do Vaticano, perto da Porta
Angélica. O polícia abriu a porta do automóvel e emitiu
um grunhido, fazendo sinal a Tomás de que o seguisse. O
visitante apeou-se e alçou o olhar para o enorme vulto
iluminado que se erguia à esquerda; tratava-se da
grande e emblemática abóbada iluminada da Basílica de
São Pedro, que recortava a noite como um gigante
adormecido.
Encaminharam-se ambos para o complexo do Vaticano, na
zona de Belvedere, o italiano à frente em passo
apressado, o historiador atrás ainda sem perceber
exactamente o que se passava. O polícia fez continência
a um homem alto que os esperava junto à Porta Angélica,
vestido com uma fantasia espampanante em faixas
berrantes de azul e amarelo, como se a roupa fosse um
estandarte, e com uma boina negra na cabeça. Seria um
palhaço? Ali?
“Professore Noronha”, disse o desconhecido das roupas
garridas, cumprimentando-o. “Faça o favor de me
acompanhar.”
Atordoado com a vertigem dos acontecimentos, Tomás
amaldiçoou-se em voz baixa. Como podia ter confundido
um guarda suíço com um palhaço? Devia estar a dormir em
pé! Aquelas roupas, que momentos antes lhe tinham
parecido bizarras, haviam sido desenhadas por um dos
maiores pintores da história, Miguel Ângelo. Como podia
ser tão estúpido? Era decerto do adiantado da hora!...
“Onde vamos?”
“Onde o esperam.”
Engraçadinho, pensou Tomás. Aquela era uma forma de
responder sem dizer nada.
“Esses trajes”, lançou o português em jeito de
provocação. “Vocês andam sempre assim vestidos?”
O suíço lançou-lhe um olhar enfadado.
“Não”, retorquiu no tom contrariado de quem não gosta
de explicar as suas vestes garridas. “Estávamos a fazer
um exercício de parada no Portone di Bronzo, que a esta
hora está fechado, quando me chamaram de urgência.”
O desagrado do homem era evidente, pelo que Tomás
encolheu os ombros de resignação e acompanhou em
silêncio o guarda suíço pelos pátios e pelas passagens
do Vaticano, os passos de ambos a ecoarem com secura
pelo piso. Caminharam uns cinquenta metros até
desaguarem num pátio cercado pela arquitectura opulenta
da Santa Sé, marcada por uma torre redonda que o
historiador logo reconheceu; era a antiga sede do Banco
Ambrosiano, agora entregue ao Istituto per le Opere di
Religione. Passaram por um posto da Polizia Vaticana,
uma força diferente da guarda suíça e que dava um certo
ar de gendarmeria francesa, e viram adiante, à direita,
a farmácia.
“Chegámos”, anunciou o guarda suíço.
O homem conduziu o visitante por uma porta discreta.
Subiram umas escadas e foram dar a um átrio envidraçado
e apetrechado de sistemas de segurança. Adiante abria-
-se um salão com as paredes repletas de livros.
Passaram a segurança, entraram no salão e, ao estudar
as estantes com a sua panóplia de lombadas antigas,
Tomás percebeu que se encontravam na Biblioteca
Apostólica Vaticana.
As janelas abriam-se para o Cortile dei Belvedere, mas
a atenção do historiador voltou-se para o movimento
junto à porta de acesso ao grande salão da Leonina.
Viam-se dois guardas suíços, três carabinieri, dois
religiosos e mais umas pessoas à paisana; falavam em
voz baixa, umas movimentando-se com propósito, outras
aparentemente perdidas ou ociosas.
O guia entregou-o a um homem à paisana, que o levou ao
longo da Leonina até uma mulher que se encontrava de
costas, de tailleur cinzento-escuro, à executiva,
debruçada sobre uma mesa a estudar o que parecia uma
grande planta do edifício.
“Inspectora, aqui está o suspeito.”
Suspeito?
Tomás quase olhou para trás, num esforço para
identificar a pessoa a quem o homem se referira, mas
percebeu de imediato que o suspeito era ele próprio.
Ele. O uso daquela palavra em referência à sua pessoa
deixou-o chocado. Suspeito? Era suspeito de quê? Que se
passava? O que vinha a ser aquilo?
A inspectora voltou-se para o encarar e o historiador
sofreu um novo choque, mas desta vez de natureza
diferente. Ela tinha os cabelos castanhos encaracolados
até aos ombros, o nariz pontiagudo e uns olhos azuis
profundos e límpidos, à Jacqueline Bisset. Não estava
maquilhada, mas parecia-lhe encantadora.
“Que se passa?”, perguntou ela ao surpreender-lhe a
expressão embasbacada. “Que cara é essa? Está a olhar
para mim e parece que viu o Diabo!...”
“O Diabo, não”, retorquiu Tomás, esforçando-se por
retomar a compostura. “Um anjo.”
A inspectora fez um estalido de contrariedade com a
língua.
“Olhem a minha sorte!”, exclamou, revirando os olhos.
“Saiu-me um galanteador na rifa! Confirma-se assim que