Talvez seja preferível repousares.
“Prefiro não perder tempo”, disse o recém-chegado sem
hesitar. “Pela noitinha é sempre mais tranquilo. E
quanto mais fulminante for a operação menor tempo de
reacção terá o inimigo.”
O seu interlocutor ao telefone suspirou, vencido mas
não inteiramente convencido.
“Muito bem”, assentiu. “Se achas assim...” Fez uma
pausa e ouviu-se um remexer de papéis. “Vou falar com o
meu contacto e já te ligo.”
“Fico à espera, mestre.”
Fez-se nova pausa no outro lado da linha.
“Tem cuidado.”
E desligou.
O corpo estava estendido no chão, coberto por um lençol
branco, e apenas os pés eram visíveis; um encontrava-se
descalço, o outro tinha um sapato de senhora com o
salto quebrado. Viam-se algumas manchas de sangue
espalhadas pelo chão e vários homens de cócoras ou em
pé a examinarem pormenores, alguns com lupas e todos de
luvas brancas, evidentemente em busca de indícios que
pudessem dar-lhes mais informações sobre o que ali se
passara. O que sobretudo procuravam era vestígios, como
cabelos, traços de sangue ou impressões digitais, que
os conduzissem à identidade do homicida.
Valentina acocorou-se ao lado do corpo e lançou por
cima do ombro um olhar a Tomás, que se aproximava a
medo.
“Preparado?”
O historiador engoliu em seco e assentiu. A inspectora
da Polizia Giudiziaria pegou numa ponta do lençol e
dobrou-o com um movimento suave, destapando uma parte
do corpo.
A cabeça. Tomás reconheceu a face de Patrícia, já com
um toque de lividez a lavar-lhe a pele, os olhos
paralisados numa expressão vítrea de espanto, os lábios
entreabertos com a língua enrolada para dentro e uma
mancha densa de sangue seco e escuro agarrada ao
pescoço.
“Meu Deus!”, exclamou Tomás, tapando a boca com a mão
enquanto fitava horrorizado o cadáver da colega
espanhola. “Foi... foi estrangulada?”
Valentina abanou a cabeça e indicou a mancha no
pescoço. “A expressão correcta é degolada”, corrigiu-o.
“Como um cordeiro, está a ver?” Aproximou os dedos da
fenda que lhe rasgava a pele. “Usaram uma faca e...”
“Coitada! Que coisa horrível! Como é possível?” Desviou
o olhar, recusando-se a ver mais; a morte parecia
despojar a sua amiga de toda a dignidade. “Quem lhe fez
uma coisa destas?”
A italiana voltou a tapar o rosto da vítima e ergueu-se
devagar, encarando o historiador.
“É justamente o que estamos a tentar perceber. E para
isso precisamos da sua ajuda.”
“Tudo”, exclamou ele, enfático, ainda com o rosto de
lado. “Tudo o que for preciso.”
“Então comecemos pelo telefonema. Como explica que a
última chamada que ela fez tenha sido para si?”
“É muito simples”, disse Tomás, devolvendo-lhe enfim o
olhar; sabia que a questão era crucial, considerando
que aquele pormenor os levava a encararem-no como um
suspeito. “Estou aqui a trabalhar nas obras de restauro
do Fórum de Trajano, a pedido da Fundação Gulbenkian,
de que sou consultor. A Patrícia faz... fazia também
consultoria ocasional para a Gulbenkian e conhecemo-nos
de alguns trabalhos de peritagem que tivemos de levar a
cabo em conjunto. Ela chegou esta noite a Roma e, como
pelos vistos sabia que eu também cá estava, fez-me um
telefonema. Foi isto e só isto.” Valentina esfregou o
queixo, avaliando o que acabara de escutar.
“Como soube ela da sua presença em Roma?”
O historiador hesitou.
“Isso... isso não sei.”
A
inspectora,
que anotava
no seu
bloco
estas
informações, parou de escrever e levantou os olhos para
o suspeito. “Não sabe como?”
“Não sei”, repetiu ele. “Suponho que alguém da fundação
lhe deve ter dito...”
“Tem a noção de que vamos verificar tudo?”
Tomás esboçou uma expressão cândida.
“Esteja à vontade”, disse, retirando o telemóvel do
bolso. “Se quiser, digo-lhe já o número do engenheiro
Vital, em Lisboa. É ele que habitualmente lida comigo e
com a Patrícia.” Premiu umas teclas. “Cá está. É o
21...”
“Dá-me o telefone dele depois”, interrompeu-o
Valentina, aparentemente convencida com a explicação e
a mente já ocupada com outras questões mais prementes
naquele momento. “Ela revelou-lhe o que veio cá fazer?”
“Não. Pareceu-me até um pouco misteriosa quanto a
isso.”
“Misteriosa?”
“Sim, não quis dizer tudo ao telefone. Mas combinámos
almoçar amanhã e é natural que nessa altura me
contasse.” O olhar de Tomás passeou pelas estantes
ricamente decoradas da Sala Consultazioni Manoscritti.
“Percebo agora que veio fazer uma investigação aqui à
Biblioteca do Vaticano...” Valentina parecia já não o
escutar; lia com atenção umas fotocópias cheias de
rabiscos e anotações marginais. O português espreitou
as fotocópias e verificou, surpreendido, que incluíam
uma velha fotografia sua; era um relatório com o perfil
dele.
“Vejo aqui que, além de historiador, o senhor é cripta-
nalista e perito em línguas antigas.”
“Exacto.”
A inspectora deu dois passos para o lado e indicou uma
folha branca de papel pousada no chão.
“Sabe dizer-me o que é isto?”
Tomás pôs-se ao lado da italiana e inclinou-se sobre a
folha, analisando-a de perto.
“Que estranho!”, murmurou. “Não se parece com nenhuma
língua ou alfabeto que eu conheça...”
“De certeza?”
O historiador permaneceu ainda alguns segundos a
estudar os estranhos símbolos, procurando pistas que o
conduzissem a uma solução, até que endireitou o corpo.
“Absoluta.”
“Veja lá bem.”
Tomás manteve a atenção presa no enigma. Um dos
símbolos, o último, chamou-lhe a atenção; parecia bem
diferente dos restantes. Para o ver de uma outra
perspectiva, deu uns passos e contornou a folha de
papel. Baixou-se de novo e analisou mais uma vez a
charada. Após uns instantes, os lábios abriram-se num
sorriso e fez sinal à inspectora.
“Venha ver.”
Valentina foi ter com ele e, inclinando-se também sobre
o papel, encarou o enigma na perspectiva inversa.
“Alma?”, murmurou ela, sem descolar os olhos da folha,
agora de cima para baixo em relação à perspectiva
anterior. “Que diabo quer isto dizer?.”
O historiador inclinou a cabeça.
“Ora!”, exclamou, apontando para a palavra. “Não sabe?”
“Em italiano, alma significa espírito...”