“Em italiano, alma significa espírito...”
“Tal como em português, aliás.”
“Mas, neste contexto, o que raio quererá isto dizer?”
Tomás curvou os lábios numa expressão de ignorância.
“Não sei. Será que o assassino se quer fazer passar por
uma alma penada? Pretenderá insinuar que nunca o
apanharão porque é fugidio como um espírito?”
Valentina pousou a mão sobre o ombro do seu
interlocutor e deu-lhe umas palmadas de encorajamento,
claramente impressionada.
“Você é bom, não há dúvida”, disse num tom de
aprovação. Endireitou-se e encarou-o com uma expressão
de desafio. “Quem sabe se conseguirá ajudar-me ali com
uma outra charada... Quer ver?”
“Mostre lá.”
A inspectora fez-lhe sinal de que a seguisse e,
contornando o cadáver estendido no chão, aproximou-se
da mesa de leitura, no centro da Sala Consultazioni
Manoscritti. Um enorme volume encontrava-se deitado
sobre a madeira envernizada da mesa, aberto numa página
já perto do fim. “Sabe o que isto é?”
Tomás seguiu-a, caminhando com mil cautelas para evitar
pisar qualquer mancha de sangue e perturbar assim os
trabalhos de recolha de indícios. Encostou-se à mesa,
inclinou-se sobre o volume e percebeu, pelo estado do
pergaminho, que se tratava de um documento muito
antigo. Leu umas linhas e franziu a sobrancelha.
“Isto é S. Paulo”, identificou. “Um trecho da Carta aos
Hebreus.” Inspirou o aroma exalado pelo pergaminho,
sentindo-lhe o perfume adocicado pelos séculos. “Um
original da Bíblia, portanto. Escrito em grego, por
sinal.” Olhou com uma expressão interrogadora para a
italiana. “Que manuscrito é este?” Valentina pegou no
volume e exibiu as letras na capa dura. “Codex
Vaticanus.”
Ao ver o título, o historiador escancarou a boca de
admiração e cravou de novo os olhos no manuscrito,
desta feita com incredulidade, como se visse e não
acreditasse. Reanalisou o pergaminho para se certificar
de que era mesmo antigo e a seguir aproximou o nariz
para o cheirar. A confirmação deixou-o estupefacto.
“Isto é o Codex Vaticanus? O documento original?”
“Sim, claro. Porquê essa admiração?”
Como se o manuscrito fosse uma relíquia que valesse o
seu peso em ouro, Tomás arrancou-o das mãos da
inspectora e pousou-o com infinito cuidado sobre a mesa
de leitura; dir-se-ia que manejava um delicado
candelabro de cristal.
“Isto é um dos mais valiosos manuscritos que existem no
planeta!”, disse, num tom de repreensão. “Não se pode
pegar nele assim de qualquer maneira. Meu Deus, isto é
uma coisa única! Não tem preço! É como... é como se
fosse a Mona Lisa dos manuscritos, percebe?” Lançou um
olhar fulminante para a porta, como se o papa ali
estivesse e o quisesse admoestar nos termos mais
vigorosos por não guardar devidamente um tesouro
daqueles. “Nem sabia que eles autorizavam com tanta
facilidade a consulta deste original. É incrível! Uma
coisa destas não devia ser permitida! Como é possível?”
“Tenha calma”, devolveu Valentina. “O prefetto da
biblioteca já me explicou que, em condições normais,
ninguém tem acesso a este manuscrito, apenas a cópias.
Mas parece que a vítima era um caso especial...”
Tomás assentou os olhos no corpo tapado pelo lençol, na
passagem entre as duas salas, e engoliu a indignação.
“Ah, bom...”
Se o acesso ao original do Codex Vaticanus era
excepcional, raciocinou, nada tinha a dizer.
“O que eu queria era saber o que tem este manuscrito de
tão especial.”
A atenção do historiador regressou ao códice pousado
sobre a mesa de leitura.
“De todas as Bíblias que recuam aos primórdios do
cristianismo, o Codex Vaticanus é provavelmente a de
melhor qualidade.” Passou a mão sobre o pergaminho
amarelecido ao longo de quase dois milénios. “Data do
século IV e contém a maior parte do Novo Testamento.
Dizem que foi uma oferta do imperador bizantino ao
papa.” A palma da mão desceu sobre a folha e acariciou-
a com um movimento suave. “Um tesouro. Nunca imaginei
poder um dia tocar nele.” O rosto abriu-se num sorriso
quase beatífico. “O Codex Vaticanus. Quem diria?” “Não
consegue
imaginar
o
que
a
professora
Escalona
procuraria nestas páginas?”
“Não faço a mínima ideia. Porque não perguntam a quem
lhe encomendou o trabalho?”
Valentina suspirou.
“Pois, esse é um dos problemas”, admitiu. “Não sabemos
para quem estava ela a trabalhar. Aliás, pelos vistos
mais ninguém sabia. Nem sequer o marido. Parece que a
professora Escalona encarava este trabalho como um
segredo de estado, está a ver?”
A observação acicatou a curiosidade de Tomás. Um
segredo
de
estado?
O
historiador
perscrutou
o
manuscrito e encarou-o com novos olhos, já não ofuscado
pela sua importância como relíquia histórica, mas
vendo-o como fonte de informação que poderia ser
relevante para o crime que ali tinha sido cometido.
“O códice está aberto na página em que a Patricia o
deixou?”
“Sim. Ninguém mexeu nele. Porquê?”
Tomás não respondeu, preferindo ler o texto com atenção
renovada. O que haveria ali que tivesse interessado à
sua amiga? Que segredos estariam encerrados naquelas
linhas? Traduziu o texto mentalmente até embater na
palavra fatídica. Pronunciou-a em voz alta.
“Phanerón.”
“Perdão?”
O historiador indicou uma linha no manuscrito.
“Vê o que está aqui escrito?”
Valentina observou os caracteres arredondados, um dos
quais lhe parecia rasurado, e, abanando a cabeça, riu-
se.
“Não entendo nada. É chinês?”
Tomás pestanejou.
“Ah, desculpe! Às vezes esqueço-me que nem toda a gente
lê grego.” Voltou a atenção para a linha que indicara.
“O que temos aqui é uma epístola de S. Paulo que consta
do Novo Testamento. Trata-se da Carta aos Hebreus. Este
versículo é o 1:3 e a palavra que está aqui rasurada é
phanerón. Phanerón, ou manifesta. Nesta linha Paulo diz
que Jesus ‘manifesta todas as coisas pela Sua palavra
poderosa’. Mas a maior parte dos manuscritos da Bíblia
usa neste trecho a palavra pherón, que significa
sustém. Ou seja, uma coisa é dizer que Jesus manifesta
todas as coisas e outra é dizer que Jesus sustém todas
as coisas. Percebe? São sentidos diferentes.” Indicou a
palavra rasurada e uns gatafunhos à margem do
manuscrito. “Está a ver isto?”