“Sim...”
“Ao consultar o Codex Vaticanus, um escriba leu
phanerón e achou que havia um erro. O que fez ele?
Rasurou essa palavra e substituiu-a pela expressão mais
comum, pherón. Mais tarde um segundo escriba apercebeu-
se desta rasura, rasurou pherón e reescreveu phanerón,
a palavra original.” Apontou para os gatafunhos. “E
aqui na margem rabiscou esta nota: ‘Estúpido e
ignorante! Deixa o velho texto em paz, não o alteres!’”
Valentina cerrou as sobrancelhas, tentando extrair
daquela explicação um sentido que fosse relevante para
o assunto que tinha em mãos.
“Ah, muito interessante”, disse, evidentemente a pensar
o contrário. “E então? Qual a pertinência dessa charada
para esta investigação?”
Tomás cruzou os braços e apoiou o queixo nas mãos, numa
pose pensativa, enquanto considerava as implicações da
descoberta que acabara de fazer.
“É muito simples”, disse. “Esta rasura no Codex
Vaticanus ilustra um dos maiores problemas da Bíblia.”
Inclinou a cabeça para o lado, como se algo tivesse
acabado de lhe ocorrer. “Deixe-me fazer-lhe uma
pergunta: na sua opinião, a Bíblia representa a palavra
de quem?”
A italiana riu-se.
“Ora, que pergunta!”, exclamou. “De Deus, claro. Toda a
gente sabe isso!”
O historiador não acompanhou a gargalhada. Em vez disso
ergueu uma sobrancelha, numa expressão teatral de
cepticismo. “Está a dizer-me que foi Deus quem escreveu
a Bíblia?” “Bem... quer dizer, não”, atrapalhou-se
Valentina.
“Deus
inspirou
os
cronistas...
as
testemunhas... enfim, os evangelistas que escreveram as
Escrituras.”
“Essa inspiração divina significa o quê? Que a Bíblia é
um texto infalível?”
A inspectora hesitou; era a primeira vez que a forçavam
a pensar nisso dessa maneira.
“Suponho que sim. A Bíblia traz-nos a palavra de Deus,
não é? Nesse sentido, acho que se pode afirmar que é
infalível.”
Tomás lançou uma espreitadela ao Codex Vaticanus e fez
um estalido com a parte lateral dos lábios.
“E se eu lhe disser que pelos vistos a Patrícia andava
à caça dos erros do Novo Testamento?”
A inspectora esboçou um esgar inquisitivo.
“Erros? Que erros?”
O historiador susteve-lhe o olhar.
“Não sabia? A Bíblia contém muitos erros.”
“O quê?”
Tomás girou a cabeça em redor, procurando certificar-se
de que ninguém o escutava. No fim de contas encontrava-
-se em pleno Vaticano e não queria desencadear nenhum
incidente. Viu dois sacerdotes junto à porta que
conduzia à Leonina, um deles devia ser o prefetto da
biblioteca,
mas
concluiu
que
a
distância
era
suficientemente grande e não corria o risco de ser
escutado.
Inclinou-se, mesmo assim, para a sua interlocutora e
numa postura de conspirador preparou-se para partilhar
com ela um segredo com quase dois milénios.
“São milhares de erros a infectar a Bíblia”, murmurou.
“Incluindo fraudes.”
V
O silêncio da noite de Dublin foi perturbado pelo toque
impaciente do telemóvel. Havia já vinte minutos que
Sicarius aguardava aquela chamada num canto discreto no
exterior do aeroporto, longe dos candeeiros ou de
qualquer outra iluminação. Retirou o aparelho do bolso
e verificou a origem do telefonema antes de atender.
“Já tenho a informação de que precisas”, anunciou-lhe a
voz do outro lado da linha. “Parece que o nosso amigo
está enfiado na Chester Beatty Library.”
Sicarius extraiu do bolso a caneta e o bloco de notas e
pôs-se a rabiscar a informação.
“Ches... ter Bi...” Hesitou. “Como se soletra a segunda
palavra?”
“B... E... A... T... T... Y”, entoou o mestre do outro
lado da linha. “Beatty.”
“Library”, completou Sicarius. Guardou o bloco de notas
e espreitou o relógio, que durante o voo tinha já
ajustado à hora de Dublin, uma a menos que em Roma.
“Aqui são duas e meia da manhã. O gajo está numa
biblioteca a esta hora?”
“Estamos a lidar com historiadores...”
Sicarius soltou uma gargalhada seca e começou a
caminhar, abandonando o canto sombrio e dirigindo-se à
fila dos táxis, duas dezenas de metros adiante.
“E esta? Só me saem ratos de biblioteca na rifa!...”,
observou. “Dê-me uma referência ali perto.”
“Uma referência? Porquê?”
“Não quero indicar ao taxista a Chester Beatty Library.
Quando amanhã a coisa começar a ser noticiada é
importante que ele não se recorde que transportou um
cliente justamente para aquele local a estas horas...”
“Ah, estou a ver.” Calou-se e ouviu-se na linha o som
de papéis a serem remexidos. “Estou a verificar aqui no
mapa e... olha, o Castelo de Dublin. A biblioteca fica
ao pé do castelo.” Sicarius tomou nota da referência.
“Mais alguma coisa?”
O seu interlocutor afinou a voz.
“Ouve, não pensei que quisesses actuar já, por isso não
tratei do teu acesso ao edifício. Terás de improvisar
um pouco. Mas joga pelo seguro, ouviste?”
“Fique descansado, mestre.”
“Não te deixes apanhar. E se fores apanhado já sabes o
que tens de fazer.”
“Fique descansado.”
“Boa sorte!”
Sicarius guardou o telemóvel no bolso e estacou diante
da fila dos táxis. Chamar fila àquilo era, porém, uma
forma de falar; só lá estavam dois automóveis. Os
respectivos motoristas pareciam adormecidos, as cabeças
tombadas sobre os volantes, os vidros fechados para os
abrigar do frio. O recém-chegado bateu à janela da
viatura da frente e o motorista despertou com um
sobressalto. Olhou estremunhado para o cliente e levou
um instante a focar os olhos, recompor-se e fazer-lhe
sinal.
“Entre!”
O recém-chegado instalou-se no lugar de trás, junto à
janela, e pousou a pasta de couro negro no regaço.
“É para o Castelo de Dublin.”
O táxi arrancou, deslizando num murmúrio pelas vias de
saída do aeroporto rumo à cidade. As ruas estavam
desertas e a iluminação pública projectava um halo
espectral sobre a neblina.
Com movimentos precisos, Sicarius abriu a pasta e
contemplou a preciosidade que trazia ali dentro. A
adaga reluzia como cristal. Inspeccionou o metal e não
encontrou o menor vestígio de sangue; a limpeza tinha
sido perfeita. O viajante ficou um longo momento a
admirar-lhe
o
brilho,