quase
como
se
estivesse
enamorado; a lâmina era uma verdadeira obra de arte,
ondulante e aguçada, a prova de que os seus
antepassados milenares, inspirados pela graça divina,
sabiam moldar os metais até à perfeição.
Meteu a mão na pasta e pegou na sica; era
surpreendentemente pesada. Passou o dedo pelo fio da
lâmina e sentiu-lhe o poder cortante; talvez fosse
mesmo capaz de dividir uma folha de papel como se não
passasse de um bife tenro. A lâmina cintilava de tão
cristalina, reflectindo as luzes do exterior como um
diamante puro. Com o jeito de um pai carinhoso que
deposita a filha adormecida no leito, Sicarius
devolveu-a com cuidado ao seu lugar no interior da
pasta. Sabia que a adaga não permaneceria assim
imaculada muito mais tempo.
O sangue esperava-a.
VI
A face contrariada de Valentina Ferro constituiu um
sinal de alerta de que Tomás de imediato se apercebeu.
A inspectora pareceu reagir mal à revelação de que a
Bíblia continha milhares de erros e fechou o rosto,
criando uma súbita barreira entre os dois. O português
tinha consciência de que, se havia assuntos de grande
sensibilidade, as convicções religiosas eram sem dúvida
um dos que requeriam maiores cuidados. Não valia a pena
ferir susceptibilidades e ofender as pessoas, mesmo que
fosse com a verdade.
Em busca de uma saída, deitou teatralmente uma mirada
ao relógio e fez um ar admirado.
“Ah, já é tão tarde!”, exclamou. “Parece-me que é
melhor voltar para o Fórum de Trajano. Os trabalhos de
restauro vão prosseguir até ao amanhecer e o professor
Pontiverdi está a contar comigo.”
A inspectora fez um esgar de descontentamento.
“O senhor não vai a parte nenhuma enquanto eu não
autorizar”, sentenciou num tom frio.
“Porquê? Ainda precisa de mim?”
Valentina desviou o olhar para o corpo coberto que
permanecia deitado no chão.
“Tenho um crime para deslindar e os seus talentos
podem-me ser úteis.”
“Mas o que quer ainda saber?”
“Quero perceber a investigação que a vítima estava a
conduzir e a sua relação com o homicídio. Isso pode
dar-me pistas cruciais.”
O historiador abanou enfaticamente a cabeça.
“Eu não disse que havia uma relação!...”
“Mas digo eu.”
A
declaração
deixou
Tomás
atónito.
Olhou
momentaneamente para o cadáver e depois para a
inspectora.
“O quê?”, admirou-se. “Acha que a Patrícia foi
assassinada por causa da investigação que estava a
fazer? Porque diz isso?” O rosto de Valentina voltou a
fechar-se.
“Cá tenho as minhas razões”, murmurou de uma forma
críptica. Pousou a mão sobre o Codex Vaticanus,
redireccionando
a
conversa
para
a
questão
que
considerava central. “Explique-me lá essa treta dos
erros da Bíblia que ela procurava neste manuscrito.”
O historiador hesitou. Deveria mesmo meter-se por
aquele caminho de destino incerto? Os instintos
respondiam-lhe que não. Sabia que poderia ter de dizer
coisas consideradas ofensivas por um crente e não tinha
a certeza de que isso seria sensato. Cada pessoa tinha
as suas convicções, e quem era ele para as pôr em
causa?
Mas havia o outro lado da questão a levar em conta.
Afinal uma amiga dele tinha sido assassinada e, se a
inspectora encarregada da investigação considerava que
os
seus
talentos
e
conhecimentos
poderiam
ser
importantes para deslindar o caso, porque haveria de
lhe negar ajuda? Além do mais, não podia esquecer o
pormenor de que tinha sido considerado sob suspeita.
Pressentia que, se não colaborasse nas investigações,
isso poderia ser problemático.
Respirou fundo e cerrou os olhos por momentos, como um
pára-quedista prestes a lançar-se no vazio, e deu o
passo que mais temia.
“Muito
bem”,
concordou.
“Mas
primeiro
deixe-me
esclarecer uma coisa.”
“O que quiser.”
Os olhos verdes de Tomás cravaram-se no azul celestial
dos de Valentina, como se quisessem ver para além deles
e chegar ao fundo para perceber o que os animava.
“Você é cristã, presumo.”
A inspectora da Polizia Giudiziaria assentiu com um
movimento discreto da cabeça e puxou de debaixo da gola
da camisola um delicado fio de prata que trazia
pendurado ao pescoço.
“Católica romana”, disse, exibindo uma pequena cruz
pendurada no fio. “Sou italiana, não é verdade?”
“Então há uma coisa que é importante que perceba”,
afirmou ele. Encostou a palma da mão ao seu próprio
peito. “Eu sou historiador. Os historiadores não
investigam com base em fé religiosa, antes assentam as
suas conclusões nos vestígios: restos arqueológicos ou
textos, por exemplo. No caso do Novo Testamento,
estamos a falar essencialmente de manuscritos. Eles são
uma importantíssima fonte de informação para perceber o
que aconteceu no tempo de Jesus. Porém, têm de ser
usados com muita cautela. Um historiador precisa de
perceber as intenções e os condicionalismos do autor
dos textos para descobrir coisas para além do que está
lá escrito. Repare, se eu ler uma notícia do Pravda no
tempo da União Soviética a dizer que foi feita justiça
sobre um lacaio imperialista que punha em causa a
revolução, tenho de eliminar toda a retórica ideológica
e perceber o facto por detrás dessa notícia: foi
executada uma pessoa que se opunha ao comunismo.
Certo?”
O olhar de Valentina tornou-se gelado.
“Está a comparar o cristianismo com o comunismo?”
“Claro que não”, apressou-se ele a esclarecer. “Estou
apenas a dizer que os textos exprimem a intenção e os
condicionalismos dos seus autores, e um historiador
deve levar isso em conta quando os lê. Os autores dos
Evangelhos não queriam meramente relatar a vida de
Jesus. Pretendiam glorificá-lo e persuadir outras
pessoas de que ele era o Messias. Isso é algo que um
historiador não pode ignorar. Percebe?”
A italiana fez um sinal afirmativo.
“Claro, não sou burra”, disse. “No fundo também é isso
que um detective faz, não é verdade? Quando ouvimos uma
testemunha, temos de interpretar o que ela diz em
função da sua situação e das suas intenções. Nem todas
as suas afirmações são para levar à letra. Parece-me
óbvio.” “Nem mais”, exclamou Tomás, satisfeito por se