A técnica de Ford parecia consistir sobretudo em ficar parado por um tempo, sorrindo.
Após uns instantes, um animal — um alce talvez — aparecia de trás das árvores e o observava com curiosidade. Ford continuava a sorrir, seus olhos tornavam-se mais dóceis e brilhantes, e ele parecia irradiar um amor profundo e universal, um amor que se expandia para abraçar toda a criação. Uma quietude maravilhosa tomava conta da região ao redor, uma quietude pacífica e serena, emanada do homem transfigurado. Lentamente o alce se aproximava, passo a passo, até tocá-lo com o focinho, momento em que Ford pulava e lhe quebrava o pescoço.
— Controle de feroma — disse que era —, você só precisa saber como gerar o cheiro certo.
CAPÍTULO 31
Alguns dias após terem aportado nessa terra montanhosa, atingiram um litoral que se atravessava diagonalmente diante deles do sudoeste para o nordeste, um litoral de grandiosidade monumentaclass="underline" majestosas ravinas profundas, píncaros de gelo que se elevavam — fiordes. Durante os dois dias que se seguiram, eles escalaram e subiram pelas pedras e glaciares, assombrados com a beleza.
— Arthur! — gritou Ford de repente.
Arthur olhou para o lugar de onde vinha a voz de Ford, carregada pelo vento.
Ford tinha ido examinar um glaciar, e Arthur o encontrou agachado diante da sólida parede de gelo azul. Estava tenso de excitação — seus olhos dardejavam à procura dos olhos de Arthur.
— Olhe! — disse. — Olhe!
Arthur olhou. Viu a parede sólida de gelo azul.
— É — disse —, é um glaciar. Eu já tinha visto.
— Não — disse Ford —, você olhou, não viu. Olhe. Ford apontava para o fundo, para o coração do gelo. Arthur deu uma espiada — não viu nada além de sombras nebulosas.
— Afaste-se um pouco — insistiu Ford —, olhe de novo.
Arthur afastou-se e olhou de novo.
— Não — disse, balançando os ombros. — O que eu tenho que procurar?
E de repente ele viu.
— Você está vendo? Ele estava.
Sua boca começou a falar, mas seu cérebro decidiu que ela não tinha nada a dizer e a fechou novamente. Seu cérebro começou então a enfrentar o problema do que seus olhos diziam que estavam olhando, mas ao fazê-lo relaxou o controle sobre a boca que prontamente caiu aberta. Levantando mais uma vez o maxilar, o cérebro perdeu o controle da mão esquerda que se agitava sem sentido. Por um ou dois segundos seu cérebro tentou segurar a mão esquerda sem soltar a boca, tentando simultaneamente pensar sobre aquilo que estava enterrado no gelo, e foi provavelmente por isso que as pernas se foram e Arthur caiu serenamente no chão.
O que estava causando todo esse transtorno neural era uma rede de sombras no gelo, cerca de quarenta e cinco centímetros abaixo da superfície. Olhadas do ângulo correto, elas formavam as formas sólidas das letras de um alfabeto alienígena, cada uma com um metro de altura; para aqueles que, como Arthur, não soubesse ler magratheano havia por sobre as letras o desenho do rosto de um homem suspenso no gelo.
Era um rosto velho, magro e distinto, sério mas não carrancudo. Era o rosto do homem que ganhara um prêmio pelo projeto do litoral em que agora eles sabiam estar pisando.
CAPÍTULO 32
Um silvo agudo encheu o ar. Rodopiou e penetrou nas árvores incomodando os esquilos. Alguns pássaros voaram para longe, enojados. O ruído dançava e deslizava pela clareira. Ululava num som áspero e agredia generalizadamente. O Capitão, no entanto, observava o solitário tocador de gaita de foles com um olhar indulgente. Quase nada era capaz de abalar sua serenidade; de fato, uma vez refeito da perda de sua esplêndida banheira naquela situação desagradável no pântano tantos meses atrás, começava a achar sua nova vida extraordinariamente agradável. Tinham escavado uma cavidade numa grande pedra que ficava no meio da clareira, e aí ele ficava lagarteando todos os dias enquanto assistentes derramavam água sobre ele. Não exatamente água quente, é preciso que se diga, pois ainda não tinham arrumado um meio de esquentá-la. Não importa, isso viria; por enquanto, equipes de busca exploravam a região atrás de uma fonte de água quente, de preferência numa clareira agradável e frondosa, e se fosse perto de uma mina de sabão —
perfeito. Àqueles que diziam que tinham a impressão de que sabão não se encontra em minas, o Capitão ousara sugerir que isso talvez se devesse a eles não terem procurado com o esforço necessário, e esta possibilidade fora relutantemente admitida.
Não, a vida era muito agradável, e o que tinha de melhor era que quando a fonte de água quente fosse descoberta, completa, com clareira frondosa en suite, e quando viesse o grito ecoando de trás das colinas de que a mina de sabão fora localizada e que estava produzindo quinhentas barras por dia, seria mais agradável ainda. Era muito importante ter coisas para esperar ansiosamente.
Lamentando, lamentando, esganiçando, gemendo, grasnando, guinchando, chiando, rangendo, lá ia o gaiteiro, aumentando ainda mais o já considerável prazer do Capitão só de pensar que ele poderia parar a qualquer momento. Esta era mais uma coisa que ele esperava ansiosamente.
O que mais era agradável, perguntava-se a si mesmo. Bem, tantas coisas: o vermelho e dourado das árvores, agora que se aproximava o outono; o barulho pacífico das tesouras a alguns metros de sua banheira onde dois cabeleireiros praticavam suas habilidades num diretor de artes que cochilava e em seu assistente; a luz do sol refletida nos seis telefones reluzentes alinhados aos pés de sua banheira escavada na pedra. A única coisa melhor que um telefone que não tocava o tempo todo (ou melhor, nunca) eram seis telefones que não tocavam o tempo todo (ou melhor, nunca). Melhor do que tudo era o alegre murmurar das centenas de pessoas que lentamente se reuniam na clareira à sua volta para assistir à reunião vespertina do comitê.
O Capitão apertou marotamente o bico de seu pato de borracha. As reuniões vespertinas do comitê eram suas favoritas.
Outros olhos espreitavam a massa que se reunia. No alto de uma árvore, na beira
da
clareira,
estava
Ford
Prefect,
recém-chegado
de
climas
estrangeiros. Após sua viagem de seis meses, estava magro e saudável, seus olhos brilhavam, vestia um casaco de pele de rena; sua barba estava tão dura e seu rosto tão bronzeado como de um cantor de country-rock. Ele e Arthur Dent vinham observando os golgafrichaneses há quase uma semana, e Ford decidira que era hora de agitar um pouco as coisas. A clareira estava cheia agora. Centenas de homens e mulheres andavam por ali, conversando, comendo frutas, jogando cartas, em geral relaxando. Seus macacões de viagem estavam a essa altura imundos e até rasgados, mas todos tinham cabelos impecavelmente penteados. Ford ficou curioso ao notar que alguns deles tinham recheado o macacão com folhas e ficou pensando se seria alguma forma de proteção contra o inverno que se aproximava. Ford apertou os olhos. Não poderiam ter de repente se interessado por botânica. No meio destas especulações a voz do Capitão elevou-se sobre o burburinho.