— Para não dizer desprezo!
— Será que não dava para me ouvir um momento...
— Quero dizer, o que exatamente você está fazendo da sua vida?
— Estou sendo atacado por uma esquadra vogon! — gritou Zaphod. Era exagero, mas essa tinha sido sua primeira oportunidade até o momento de tocar na questão básica do encontro.
— Não me surpreende nem um pouco — disse o velho, sacudindo os ombros.
— Só que está acontecendo exatamente neste instante, entende? — insistiu Zaphod fervorosamente.
O ancestral espectral balançou a cabeça, apanhou a xícara que Arthur Dent tinha trazido e a observou com interesse.
— Ahn... bisavô...
— Sabia — interrompeu a figura fantasmagórica, fixando um olhar severo sobre Zaphod — que Betelgeuse V desenvolveu agora uma pequena excentricidade em sua órbita?
Zaphod não sabia e achou difícil concentrar-se na informação com todo aquele barulho, a iminência da morte e essas coisas.
— Bom, não... olha... — disse.
— E eu me virando no túmulo! — berrou o ancestral. Atirou a xícara no chão e apontou um dedo ameaçador para Zaphod.
— Culpa sua! — disse ele, num guincho.
— Um minuto e meio — murmurou Ford, com a cabeça entre as mãos.
— Tá, olha, bisavô, o senhor pode mesmo ajudar, porque...
— Ajudar? — exclamou o velho como se lhe tivessem pedido a coisa mais absurda do mundo.
— É, ajudar, e já, porque senão...
— Ajudar! — repetiu o velho como se lhe tivessem pedido a coisa mais absurda do mundo ao ponto acompanhada de uma porção de batatas fritas. —
Você fica passeando pela Galáxia com seus... — o velho fez um sinal de desprezo — com seus amigos desclassificados, ocupado demais para colocar umas flores no meu túmulo, de plástico que fossem, seria apropriado vindo de você, mas não. Ocupado demais. Moderno demais. Cético demais — até que de repente se encontra numa enrascada e vem todo cheio de boas intenções!
Sacudiu a cabeça, com cuidado para não acordar a outra que estava cochilando.
— Pois bem, não sei, Zaphod, meu jovem — prosseguiu —, acho que vou ter que pensar no assunto.
— Um minuto e dez — disse Ford numa voz cavernosa.
Zaphod Beeblebrox Quarto olhou para ele, curioso.
— Por que esse moço fica falando em números? — perguntou.
— Esses números — disse Zaphod sucintamente — são o tempo que ainda nos resta de vida.
— Ah — disse o bisavô. Falava consigo próprio. — Não se aplica a mim, é
claro — disse ele e foi até um canto menos iluminado da ponte de comando procurando um outro objeto para ficar brincando.
Zaphod sentia-se à beira da loucura, e pensava se não era melhor acabar tudo de uma vez.
— Bisavô — disse ele. — Aplica-se a nós! Nós ainda estamos vivos, e estamos prestes a perder nossas vidas!
— Um belo serviço, também.
— O quê?
— Para que serve a sua vida? Quando penso no que você fez dela a expressão "orelha de porco" me vem irresistivelmente à cabeça.
— Mas eu fui Presidente da Galáxia, cara!
— Oh — murmurou seu antepassado. — E que tipo de trabalho é esse para um Beeblebrox?
— O quê? Apenas o de Presidente, sabe? Da Galáxia inteira!
— Megacachorrinho convencido! Zaphod piscou atordoado.
— Eh, onde é que você está querendo chegar, cara? Diga, bisavô. O velhinho curvado arrastou-se até seu neto e deu-lhe uns tapinhas no joelho. Isso teve o efeito de lembrar Zaphod de que ele estava falando com um fantasma, pois não sentiu nada.
— Você sabe e eu sei o que significa ser Presidente. Zaphod, meu jovem. Você, porque já foi, e eu, porque estou morto, o que me dá um ângulo de visão maravilhosamente desobstruído. Temos aqui em cima um ditado: "A vida é
desperdiçada ao ser vivida".
— Tá bom — disse Zaphod amargamente. — Muito bom. Muito profundo. No momento estou precisando de máximas tanto quanto preciso de buracos nas cabeças.
— Cinqüenta segundos — disse Ford Prefect.
— Onde eu estava? — disse Zaphod Beeblebrox Quarto.
— Dando um sermão — disse Zaphod Beeblebrox.
— Ah, é mesmo.
— Esse cara pode mesmo — sussurrou Ford baixinho para Zaphod — ajudar a gente?
— Ninguém mais pode — respondeu Zaphod num cochicho.
Ford balançou a cabeça, sem esperanças.
— Zaphod! — era o fantasma falando. — Você se tornou Presidente da Galáxia por um motivo. Esqueceu?
— A gente não podia falar sobre isso mais tarde?
— Esqueceu? — insistiu o fantasma.
— É, esqueci! Tinha que esquecer. Eles vasculham seu cérebro quando você
pega esse emprego, sabe. Se eles achassem minha cabeça cheia de idéias sacanas eu estaria na rua sem nada a não ser uma gorda pensão, um secretariado, uma frota de espaçonaves e duas gargantas cortadas.
— Ah — disse o fantasma, sacudindo as cabeças de satisfação. — Então você
se lembra!
Fez uma pausa momentânea.
— Bom — disse ele, e o barulho parou.
— Quarenta-e-oito segundos — disse Ford. Olhou de novo para o relógio e deu umas pancadinhas. Ergueu então o olhar.
— Ei, parou o barulho — disse.
Um brilho malicioso reluziu nos olhinhos do fantasma.
— Eu diminuí a velocidade do tempo por uns instantes — disse —, só por uns instantes, vocês compreendem. Detestaria que vocês perdessem tudo o que eu tenho a dizer.
— Não, escuta aqui, morcego velho — disse Zaphod pulando da cadeira. — A: Obrigado por parar o tempo e essas coisas, jóia, maravilhoso, fantástico, mas B: dispenso o sermão, certo? Não sei que coisa grandiosa é essa a que eu estou destinado, e parece que não é para eu saber. E eu fico indignado com isso, certo? O eu antigo sabia. O eu antigo se preocupava com isso. Tudo bem, até aqui, tudo em cima. Mas acontece que o antigo eu se preocupava tanto que entrou dentro do seu próprio cérebro — meu próprio cérebro — e trancou as partes que sabiam e que se preocupavam, porque se eu soubesse e me preocupasse, não seria capaz de fazê-lo. Não seria capaz de ir ser Presidente, e não seria capaz de roubar esta nave, que deve ser a coisa mais importante. Mas esse meu antigo ego se matou, não, ao mudar meu cérebro? OK, essa era a minha escolha. Este novo eu tem suas próprias escolhas a fazer, e por uma estranha coincidência faz parte dessas escolhas não saber e não me preocupar com essa coisa grandiosa, seja ela qual for. É isso que ele queria, é isso que ele vai ter. A não ser pelo fato de que esse meu velho ego tentou manter-se no controle, deixando ordens na parte do meu cérebro que ele trancou. Pois bem, eu não quero saber, e não quero ouvi-las. Essa é
a minha escolha. Não vou ser fantoche de ninguém, principalmente de mim mesmo.
Zaphod deu um soco furioso no painel, sem notar os olhares atônitos que estava atraindo.
— O velho eu está morto! — exclamou. — Ele se matou! Os mortos não deviam ficar tentando interferir nas questões dos vivos!
— E ainda assim você me evocou para tentar tirá-lo de uma enrascada —
disse o fantasma.
— Ah — disse Zaphod, sentando-se novamente. — Aí é diferente, né?
Dirigiu um sorrisinho sem graça para Trillian.
— Zaphod — disse a aparição em voz áspera —, acho que a única razão de eu estar aqui gastando meu fôlego com você é que estando morto não tenho muito o que fazer com ele.