"Isso, isso", retorquiu Tomás, levantando timidamente o seu copo. "Mas ainda não respondeu à minha pergunta."
"Relembre-me."
"O que diz a mensagem que vocês interceptaram?"
"A mensagem entre o professor Cummings e o seu amigo?"
"Essa mesma."
Orlov consultou o envelope de onde já tirara as fotografias das vítimas dos assassínios.
"Olhe, tenho aqui uma fotocópia. Quer ver?"
O russo estendeu um papel e Tomás leu-o de uma assentada.
Filipe,
When He broke the seventh seal, there was silence in heaven. See you. Jim O historiador olhou interrogativamente para o polícia.
"O que diabo quer isto dizer?"
Orlov riu-se.
"Foi justamente para responder a essa pergunta que acabei de o contratar!"
Tomás releu a mensagem.
"Bem... ninguém pode dizer que isto não requer um profissional."
O russo pegou na fotocópia.
"Repare, há aqui uma parte que, para nós, é clara." Apontou para a terceira linha. "Esta despedida, see you, sugere que James Cummings e Filipe Madureira 46
planeiam encontrar-se em breve." Bateu com o dedo na segunda linha. "Mas o essencial da mensagem, e o nosso grande problema, está na frase principal."
Tomás pegou na fotocópia e observou a segunda linha.
"Esta, é?"
"Sim. Ora leia."
O historiador afinou a voz e, num sussurro baixo e com palavras pausadas, enunciou então o enigma que aquelas linhas encerravam.
"Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no céu."
V
Uma tranquilidade inquietante parecia dominar o ambiente. Era algo de irreal, perturbador até, como se um espectro invisível pairasse no ar, flutuando fantasmagoricamente sobre as conversas sussurradas. Só ao meio-dia, quando deambulava pelo terceiro lar que visitava nessa manhã, Tomás percebeu o que o desorientava.
O mutismo.
Figuras curvadas e enrugadas, frágeis, as cabeças calvas ou cobertas por flocos brancos de cabelo, rodeavam a grande mesa, como resignadas ao inexorável expirar do tempo; a fogueira que anos antes as animara de vida encontrava-se agora quase extinta, mera lenha de onde já não saía chama ardente, apenas um vago fio de fumo; a sua vida tornara-se o calor ténue da lareira que se apagava, prestes a ser vencida pelo grande frio que se acercava, cruel e eterno.
Alguns idosos mergulhavam devagar as colheres na sopa; outros, de babete, tinham mulheres de bata que lhes levavam a comida à boca, como se fossem bebés; e dois pareciam soçobrar de sono sobre a mesa, a cabeça pendendo aos solavancos para a frente, os olhos húmidos quase derrotados pela modorra, as bocas desdentadas pingando saliva. Mas o que todos tinham em comum, para além do aspecto gasto e da chama que se lhes apagava no peito, era comerem em silêncio. Os murmúrios rompiam intermitentes, pautados pelo tilintar dos talheres na loiça branca e pelo schlurp molhado das bocas desdentadas a sorverem a sopa. Os sons do almoço.
Tomás ficou um longo instante a contemplar a cena, quase surpreendido por haver quem almoçasse assim. Desde a infância que se habituara à ideia de que as refeições em grupo eram acontecimentos sociais, o momento em que a família ou os amigos se juntam em redor de uma mesa para afirmarem o seu sentido de grupo, trocarem impressões, partilharem sentimentos, esgrimirem argumentos. Era o momento da palavra, das histórias, das gargalhadas, da discussão, da disputa até, o instante em que a comida por vezes se via remetida para segundo plano, como se não passasse de mero pretexto para a animada reunião diária.
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Ali, todavia, tudo era diferente. A refeição parecia ter perdido o seu sentido social, reduzira-se ao instante em que aquelas figuras carcomidas pelos anos convergiam para a mesma sala para chupar ruidosamente as suas colheres de sopa.
Era um momento de solidão. Tomás já ouvira dizer que, com a idade, as pessoas tendem a regressar à infância; não à infância da criança irrequieta que tudo põe de pernas para o ar, mas à infância mais tenra, mais primitiva, mais inerte, a infância do bebé que ronrona e dorme e come e defeca e ronrona e dorme e come e defeca. Uma coisa, no entanto, é ouvir em abstracto essa descrição do que é o envelhecimento; outra, bem mais brutal, é vê-lo diante de si, tê-lo perante os seus olhos, senti-lo palpável, constatá-lo real, sabê-lo tão cruamente verdadeiro.
"É uma cena estranha, não lhe parece?"
Tomás voltou a cabeça para trás e pousou os olhos verdes nos castanhos achocolatados da mulher que falara. Tinha um olhar meigo e um rosto bonito, os cabelos escuros ondulados com madeixas claras.
"Sim", concordou ele. "Nunca imaginei que o ambiente de um lar tivesse este ar assim tão... tão de berçário."
A mulher estendeu a mão.
"Maria Flor", apresentou-se. "Sou a directora do lar." Cum-primentaram-se.
"Veio visitar algum familiar?"
"Não. Estou à procura de um lugar para a minha mãe."
Maria pediu-lhe dados sobre o estado de saúde da mãe e, depois de o escutar, assumiu uma expressão conhecedora.
"Não é fácil, pois não?"
"Não, não é."
A directora passou os olhos pela sala de jantar, onde os velhos engoliam as sopas em silêncio.
"Às vezes, quando estou aqui a ver os meus hóspedes à hora das refeições, dou comigo a pensar nos triunfos da medicina. Anunciam-se curas para o cancro, soluções para as doenças cardíacas, vacinas novas, antibióticos mais eficientes, descobertas incríveis que nos permitem prolongar a vida." Sorriu sem humor.
"Assim dito é muito bonito, não é? Prolongar a vida, triunfar sobre as doenças, viver até aos cem anos. Que coisa magnífica!" Espreitou Tomás. "Cada vez se morre mais tarde, já reparou?"
"Sim, é extraordinário."
"É, não é?" Voltou a contemplar o almoço. "Mas para quê?" Torceu os lábios.
"Para quê? Quando se diz que vivemos muito mais tempo, até dá a impressão de que é como uma festa que se prolonga madrugada dentro. Faz-me lembrar quando eu era miúda e os meus pais me mandavam para a cama depois de dar o Bonanza na 48
televisão. Adorava o Bonanza e detestava quando o programa acabava, porque era sinal de que tinha de me ir deitar. Isto aqui é a mesma coisa. Os avanços da medicina dão a impressão de que chegou um Bonanza que dura horas e horas. Em vez de ir para a cama às dez da noite, dizem-me que me posso deitar às cinco da manhã." Arregalou os olhos e imitou uma voz juvenil. "Canda pinta!"
"E um bocado isso, sim", concordou Tomás. "A medicina permite-nos ir para a cama muito mais tarde."
Maria ergueu o dedo.
"E um facto que morremos muito mais tarde, sim senhor. Mas isso tem um preço, sabe?"
"Qual?"
A directora fez um gesto largo que abarcou toda a sala de jantar.
"Este. Prolongamos a vida e, a partir de um certo limite, começamos a vegetar." Voltou-se para Tomás. "Imagine-se a si com a idade desta gente. Não consegue andar, baralha as coisas, não pode cuidar de si próprio nem para as coisas mais elementares. Põem-lhe uma fralda, limpam-lhe o rabo, dão-lhe a sopa à boca, passa o tempo sentado ou deitado a ver o dia passar. Que sentido tem dizer-se que aumentou a sua esperança de vida? De que vida estamos exactamente a falar? Da vida das fraldas, do babete, do rabo que nos limpam?"