"Ai sim?"
"Aliás, a última pessoa a vê-lo foi, pelas minhas contas, um tipo chamado Abdul Qarim, na sede da OPEP."
"O Filipe foi visto pela última vez na sede da OPEP?"
"Sim."
"Mas isso não é na Arábia Saudita?"
Orlov riu-se.
"Não, professor. É aqui na Europa."
"A OPEP está sedeada na Europa?"
Mais sons confusos revelavam que o russo metera um novo bocado de comida na boca. Mastigou à pressa e, instantes depois, a voz abafada pelos alimentos e a respiração quase ofegante de tanto esforço de deglutição, conseguiu voltar a falar.
"Viena."
VI
Quando lhe disseram que o edifício se situava junto ao canal do Danúbio, Tomás imaginou um palacete rodeado de verdura, imponente na sua arquitectura 52
imperial, o espelho azul do rio estendido a seus pés como um vassalo prostrado diante do suserano. Foi talvez porque as expectativas eram tão elevadas que Tomás vacilou de decepção ao chegar ao número noventa e três daquela rua de Leopoldstadt. Permaneceu um instante a observar o edifício baixo e feio, com estruturas brancas ou cinza intercaladas por linhas azuis, no topo uma bandeira azul e branca, um relógio digital e a sigla OPEC.
A sede da Organização dos Países Exportadores de Petróleo era tudo menos grandiosa. Não passava de uma mera arca encaixada entre edifícios de escritórios, no segundo distrito de Viena; não havia ali magnificência nem esplendor, nada que sugerisse que era daquele local que se geria o maior e mais lucrativo negócio do planeta, o produto milagroso que fazia mexer o mundo. Chegou a duvidar dos seus sentidos, a achar que aquele não era o endereço que procurava, deveria certamente haver engano, mas a sigla OPEC no topo e o noventa e três sobre a porta coberta por uma complicada estrutura envidraçada não ofereciam dúvidas. Estava mesmo diante da sede da OPEP.
Entrou no edifício e dirigiu-se à recepção.
"O senhor Abdul Qarim, por favor."
"Tem reunião marcada?"
"Sim. O meu nome é Tomás Noronha. Venho da parte da Interpol."
O empregado árabe digitou um número e deu a informação para o outro lado da linha. Tomás nada percebeu da algaraviada, excepto o seu nome e o da polícia internacional. O empregado ouviu as instruções, agradeceu e desligou.
"O senhor Qarim já vem", disse. Apontou para a rua. "Queira esperar lá fora, por favor."
"Lá fora?", admirou-se o visitante.
"Sim, ele pediu que o esperasse lá fora."
Sem nada entender, Tomás saiu do edifício e aguardou junto à estrutura envidraçada da entrada, espreitando amiúde para o interior da sede da OPEP. Viam-se muitos homens de turbante, outros de gravata, quase todos árabes ou africanos, passavam com pastas para um lado e para o outro, mas sem pressa, o seu não era um ritmo de stress. Cá fora, Tomás impacientava-se. Ia mudando a perna de apoio e sentia-se crescentemente irritado pela falta de cortesia, nunca vira ninguém mandar um visitante esperar na rua.
Os carros passavam num ronronar constante, de olhos fechados parecia o som do mar, o murmúrio furioso pontuado por buzinadelas exasperadas da mesma maneira que o marulhar das ondas é entrecortado pelo grasnar melancólico das gaivotas. Tratava-se realmente de uma desconsideração, reflectiu.
As buzinadelas tornaram-se tão insistentes que virou a cara para saber o que 53
se passava. Um reluzente Mercedes prateado, um desportivo de dois lugares com linhas aerodinâmicas, parara diante da porta da sede da OPEP e, por entre a penum-bra do interior, vislumbrou uma mão a agitar-se no ar. Não percebeu o que era e inclinou-se para a frente, tentando ver melhor. A mão parecia voltada na sua direcção e dava a impressão de o chamar. Será comigo?, questionou-se. Esboçou um gesto interrogativo para si mesmo e a mão fez que sim. Aproximou-se, cauteloso, e, para lá da janela aberta, viu um homem de turbante ao volante.
"Você é o tipo da Interpol?", perguntou o desconhecido.
"Não... quer dizer, sim, sou eu."
O homem estendeu o braço do interior e empurrou a porta do carro para fora.
"Entre, entre", convidou. "Eu sou o Abdul Qarim."
Vencendo a surpresa, Tomás encaixou-se no cubículo e cumprimentou o seu anfitrião. Era um homem magro, de meia-idade, com uma barba pontiaguda e os malares salientes. Tinha um shumag vermelho e branco na cabeça e o corpo coberto por um thoub, uma longa túnica escura, vestes tradicionais que ofereciam um estranho contraste com a sofisticada tecnologia que brilhava a âmbar no tablier do Mercedes. O volante do automóvel era seguro por dedos repletos de reluzentes anéis, eram tantos que dir-se-ia ter a mão coberta por uma coroa.
"Julguei que a nossa conversa era no seu escritório."
Mal fechou a porta, o carro arrancou com tal brusquidão que os pneus guincharam e até o corpo se lhe colou ao assento, como se fosse um astronauta no momento da descolagem.
"Viena é o meu escritório", disse o árabe. Fez um sinal com o polegar para o edifício que depressa desaparecia atrás. "A nossa sede é horrível, não acha? Vou levá-lo a um sítio mais interessante." Olhou para o seu passageiro. "Conhece Viena, senhor Tomás?"
"Não."
"É uma cidade charmosa", considerou. "Passo aqui metade do ano. Uma metade em Medina, onde está a minha mulher e a minha família, e a outra em Viena."
"Medina? Na Arábia Saudita?"
"Sim. E a minha terra." Bateu no volante. "Está a ver aqui o meu carro?"
Ergueu a mão cheia de anéis e rodou-a, como se exibisse tudo em redor. "Está a ver estes automóveis na estrada? Estes escritórios, esta actividade, esta vida? Está a ver tudo isto?"
"Sim."
"Tudo isto é possível graças ao meu país."
54
Tomás sorriu.
"Oiça, Viena é uma cidade muito antiga. É mais antiga do que a Arábia Saudita."
"Sem dúvida. Mas tudo o que existe no Ocidente só existe desta forma graças a nós. Sem a Arábia Saudita, nada do que vê à nossa volta seria possível."
"Está a referir-se ao petróleo?"
"Claro. E o petróleo que faz o mundo mexer."
"Mas há muito petróleo fora da Arábia Saudita."
"Diga-me onde."
"Bem... sei lá, no Iraque, no Irão, no Kuwait..."
"Tudo países que fazem parte da OPEP e que, por isso, se articulam com a Arábia Saudita."
"Mas há outros."
"Quais? Diga lá."
"Olhe, a Rússia, os Estados Unidos..."
O árabe soltou uma gargalhada.
"Não me faça rir."
Tomás mirou-o, desconcertado.
"Qual é a piada?"
Desciam pela Obere Donaustrasse, a estrada paralela ao canal do Danúbio; o canal serpenteava ao lado, para além de um tapete de relva bem aparada, a água a reflectir as árvores e os prédios como um longo espelho. O Mercedes desportivo parecia deslizar pelo alcatrão, era um felino de prata a cortar a verdura, um perdigueiro veloz a galgar pela estrada, a marginal transformada na sua coutada.
"Milhões de pessoas em todo o mundo gozam hoje de um nível de vida incrivelmente alto, graças a Deus", disse Qarim, os olhos atentos ao tráfego.
"Queixam-se de ganhar pouco, de não terem dinheiro para comprar um carro melhor ou para construir uma casa maior, mas esquecem-se de que há apenas setenta anos ter um carro ou uma casa era privilégio de ricos, esquecem-se de que ter o lar aquecido ou poder ir passar férias ao estrangeiro era um exclusivo da aristocracia. O