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monte Discovery parecia ter mais penhascos que o normal, embora essa visão surpreendente, maravilhosa até, não animasse o cientista. Dawson olhava a fata morgana, é certo, mas a sua atenção estava presa no distante fio dos seus pensamentos.

Após um longo instante, levantou-se pesadamente, pegou no telefone e digitou um número.

"Daqui Howard Dawson, do Crary Lab. Posso falar com o major Schumacher?" Pausa. "Está, major? Bom dia, como vai? Oiça, preciso de transporte aéreo o mais depressa possível." Pausa. "Não, um Huey não serve. Tenho de ir à Península." Pausa. "Eu sei que a Península é longe. É por isso que um Huey não serve." Pausa. "Muito bem. Daqui a uma hora, diz o senhor?" Pausa. "Qual das pistas? Willy ou Pegasus?" Pausa. "Perfeito. Cá o espero. Obrigado."

Radzinski seguiu a conversa com atenção.

1 <r

"Vai a Larsen B?", perguntou, logo que o director desligou o telefone.

"Sim. Quer vir comigo?"

"Fazer o quê?"

"Temos de ver o que se passa."

"Os argentinos não servem?"

"Os argentinos são bons. Mas precisamos de mais informação."

"Já tentou Palmer?"

"A Base Palmer não tem nada. Larsen fica do outro lado das montanhas."

"E Rothera?"

"Os ingleses?"

"Sim, pode ser que os tipos do British Antarctic Survey tenham mais informação."

6

"Bem, eles também estão do outro lado", observou Dawson, espreitando o mapa da Antárctida na parede do gabinete. Rothera ficava um pouco a sul de Palmer. "Mas não custa nada tentar."

Dawson saiu do gabinete e dirigiu-se para o rádio, instalado num cubículo do edifício. O técnico de comunicações tinha tirado o dia de folga e o director, com aquele prático sentido de informalidade de que só os Americanos são capazes, ficou encarregado de o operar. Dawson sentou-se diante do aparelho, verificou se estava ligado e carregou no botão.

"McMurdo para Rothera. McMurdo para Rothera."

Crrrrrrrrrr.

"Aqui Rothera", respondeu uma voz afável, com forte sotaque britânico. "E

McMurdo que está em linha?"

"Sim, daqui McMurdo."

"Cheerio, cbaps. Aqui John Killingbeck, em Rothera. Como vai a MacTown?"

MacTown era a alcunha de McMurdo.

"MacTown está bem e recomenda-se, John."

"E a lager do Gallagher's? Continua a ser a pior cerveja do The Ice?"

O Gallagher's era um dos bares de McMurdo e o The Ice era a alcunha da Antárctida.

"É melhor do que a vossa cerveja quente."

A voz inglesa do outro lado soltou uma gargalhada.

"Duvido", exclamou. "Jolly good, chaps. Como vos posso ajudar?"

"Oiça, John. Vocês estão a monitorizar a situação de Lar-sen B?"

"Larsen B? Um momento, vou verificar."

Crrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr.

A estática prolongou-se por quase um minuto. Dawson ficou de braços cruzados, expectante, até que o silêncio rompeu aquele som arranhado e a voz britânica reapareceu.

"Rothera para McMurdo. Rothera para McMurdo."

"Estamos aqui, Rothera."

"Escutem, não temos ninguém em Larsen B..."

"Ah, é pena."

"... mas temos alguém ao largo de Larsen B."

7

Crrrrrrrrrr.

"Como?"

"Temos um navio ao largo de Larsen B."

"Ah, sim?"

"É o RRS James Clark Ross, o navio de pesquisa que se encontra ao serviço do British Antarctic Survey. O comandante Nicholls está a sintonizar a nossa frequência neste momento. Vocês precisam de falar com ele?"

"Sim, sim, por favor."

"Rothera para o James Clark. Está a ouvir?"

"Cinco por cinco, Rothera. Aqui é o capitão Nicholls."

"McMurdo precisa de ter uma palavra consigo." Uma inflexão de tom, assinalando a mudança de interlocutor. "Go on, McMurdo."

Dawson premiu o botão.

"McMurdo para o capitão Nicholls."

"Estou aqui."

"Capitão, chegaram-nos informações perturbadoras sobre o comportamento da plataforma de gelo de Larsen. Rothera disse-me que o senhor está perto."

"Afirmativo."

"Consegue vê-la?"

"Sim, sim. Encontra-se ali ao fundo. Estou a vê-la."

"Nota alguma coisa de anormal?"

"Está a referir-se a qual das plataformas? B ou C?"

"Larsen B, capitão."

"Um momento, vou pôr os binóculos."

Crrrrrrrrrrr.

"Então, está a vê-la?"

Crrrrrrrrrrr.

"Uh... sim... quer dizer, não sei."

"Então?"

Crrrrrrrrrrr.

"Há... há uma coisa estranha. Não sei... espere."

"Capitão Nicholls?"

8

Crrrrrrrrrrr.

"Estou a ver... estou a ver uma nuvem a erguer-se do... da plataforma."

"Uma nuvem?"

"Parece... sei lá, parece vapor."

"Uma nuvem de vapor?"

Crrrrrrrrrrr.

"Meu Deus!"

"Capitão Nicholls?"

"A plataforma... A plataforma..."

"O que se passa?"

"Meu Deus!"

"O que se passa?"

Crrrrrrrrrrr.

"A plataforma está a desmoronar-se!"

A trepidação era permanente, mas não impediu Dawson e Radzinski de dormitarem um pouco. O voo durava havia um punhado de horas e parecia não acabar, embora a isso os dois cientistas estivessem resignados; afinal, antes de embarcarem ambos sabiam que aquele não era o mais confortável dos aviões. O

Hércules C-130 sempre foi um aparelho muito seguro, o único avião de carga capaz de aterrar sem problemas no Pólo Sul, mas, com os seus quatro motores a hélice, assentos rudimentares e aquela vibração barulhenta, dificilmente seria a opção mais popular entre os amantes da classe executiva.

Dawson manteve-se encolhido na sua parka vermelha, auscultadores colados aos ouvidos para abafar o rumorejar permanente do avião, os olhos cerrados num cochilar leve e atormentado. Despertado por um ou outro solavanco, ainda espreitou duas vezes pela janela, tentando vislumbrar algo de novo no vasto planalto da Antárctida; mas a imagem era a mesma de sempre, um extenso lençol de neve perdendo-se para além do horizonte, curvando-se aqui e ali em montanhas, abrindo-se em belos desfiladeiros, uma mancha leitosa a reluzir ao sol, que brilhava baixo no céu eternamente azul. A paisagem seria fascinante para um recém-chegado, mas a verdade é que já não constituía novidade para ele. Além disso, tinha outras preocupações em mente.

Sentiu um movimento e abriu os olhos. O tenente Schiller inclinava-se sobre ele e fazia-lhe um gesto. Dawson retirou os auscultadores que o isolavam da barulheira do avião.

"Estamos a chegar", anunciou o engenheiro de voo, quase a gritar. Fez um 9

gesto com a mão. "Venha ver."

Dawson seguiu Schiller pela carga do aparelho e Radzinski foi atrás.

Escalaram os degraus e subiram ao cockpit, onde se acotovelavam os dois pilotos e o navegador. O C-130 trepidava e balouçava, pelo que os recém-chegados tiveram de se agarrar aos apoios de segurança para se equilibrarem.

O piloto viu-os entrar e fez sinal pela janela, apontando lá para baixo.

Dawson esticou a cabeça e viu a Península Antárctica estender-se pelo mar, rompendo as águas como uma adaga; era a protuberância aguçada da Antárctida que apontava para norte e quase tocava na ponta da América do Sul. Os glaciares desciam pelas encostas e paravam abruptamente sobre as águas, pareciam iogurtes brancos com focos azul-turquesa fluorescente a brilharem pelas fendas; a costa sinuosa nos estreitos e baías entre a Península e o mar de Bellingshausen era salpicada por múltiplas ilhas e icebergues, tanto e tanto gelo que a navegação se tornava ali impossível sem um poderoso quebra-gelo.