"E é aí que está também o número da Besta."
"Sim, é aqui." Começou a procurar o trecho. "Repare que no Apocalipse os números têm muita importância. O texto está cheio de algarismos simbólicos. Dá a impressão de esconder mensagens atrás de mensagens, como um imenso holograma."
"É o caso do triplo seis?"
"Nem mais." Tomás parou de folhear e apontou o dedo para um parágrafo.
"Está aqui", exclamou. "É a parte em que se refere o aparecimento da Besta."
Compôs a voz. "Diz assim: «É aqui que é preciso sabedoria. Quem for dotado de inteligência calcule o número da Besta, porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis»."
Ergueu os olhos para o seu interlocutor, que recebia mais picanha de um empregado.
"E diz você que isso é decifrável?", perguntou o russo.
"Não tenha dúvidas. Isto é uma mensagem oculta e tem uma solução."
Apontou para as linhas que acabara de ler.
"Está a ver esta expressão? «É preciso sabedoria», diz aqui. Quer dizer que quem tiver sabedoria poderá quebrar o enigma."
"Que sabedoria é essa?"
"A sabedoria dos iniciados." Indicou com o dedo a expressão seguinte. "Veja 76
esta frase: «Calcule o número da Besta, porque é o número de um homem.» Isto significa que se trata da sabedoria dos números."
"A matemática?"
"A guematria."
"A geometria?"
"Gue-ma-tria."
"O que é isso?"
"A guematria é uma disciplina da Cabala que está na génese da moderna numerologia. Trata-se de um método para obter o valor numérico das palavras hebraicas através da conversão das letras em números."
Orlov fez uma careta.
"Mas para que serve isso?"
"A ideia é chegar ao âmago das palavras, à revelação dos mistérios ocultos na linguagem, ao estabelecimento de ligações invisíveis entre expressões aparentemente diferentes, de modo a compreender o sentido divino da Criação. Os místicos cabalistas acreditavam que Deus criou o universo com as letras do alfabeto e escondeu segredos nos números e nas palavras por detrás dessas letras. A guematria permite atingir o sentido oculto da palavra de Deus."
"Não estou a entender..."
Tomás afastou o prato, pegou numa caneta, retirou o bloco de notas da pasta e pousou-o diante de si.
"Uma vez, em Jerusalém, um velho cabalista explicou-me isto ao pormenor", disse. "A ideia é esta. A cada letra do alfabeto hebraico corresponde um número. As nove primeiras letras associam-se às nove unidades, às nove letras seguintes associam-se as nove dezenas e as quatro letras restantes estão associadas às quatro primeiras centenas." Gatafunhou uma equação.
"Assim, as letras da palavra hebraica shanab, que significa ano, somam um total de trezentos e cinquenta e cinco. Está a ver? Ora trezentos e cinquenta e cinco é exactamente o número de dias do ano lunar. Isto significa que há uma relação numérica entre a palavra e o objecto a que ela se refere."
"Por que razão você pôs o a com letra pequena?"
"A escrita hebraica ignora muitas vogais. Quando a letra está escrita, põe-se em maiúscula. Quando a letra é dita, mas não é escrita, fica em minúscula."
"Estou a ver", murmurou Orlov. "Portanto, pelo que entendi da sua explicação da geome... uh... deste sistema, cada letra tem um valor e a soma do valor de cada letra que compõe uma palavra dá o valor dessa palavra. É isso?"
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"Exacto." Estreitou os olhos. "Mas a coisa torna-se mais interessante quando entramos nas áreas místicas. Repare na equivalência entre as palavras Elohim e Hateva, ou Deus e natureza.'"
"Têm o mesmo número, oitenta e seis. Isto significa que Deus é a natureza."
Nova equação.
"Note aqui a equivalência entre or, ou luz, e raz, mistério. Ambas valem duzentos e sete. Ou seja, a luz remete para o mistério. Quando Deus disse: yehi or!, ou faça-se luz!, iniciou o mistério da Criação."
"É espantoso."
"É, não é?" Bateu com os dedos nos rabiscos. "A guematria revela significados ocultos nas palavras."
O russo hesitou.
"E... e acha que é possível com esse sistema chegar à revelação do triplo seis?"
Tomás voltou a procurar o trecho da Bíblia que consultara minutos antes.
"Não só é possível como é este o único e verdadeiro caminho", observou.
"Repare no que diz aqui: «Quem for inteligente calcule o número da Besta, porque é o número de um homem.»" Olhou Orlov. "«Calcule o número da Besta»? «É o número de um homem»?" Deixou um sorriso aflorar-lhe aos lábios. "Não podia ser mais claro. O mistério do triplo seis é descodificável pela guematria."
"Então é preciso recorrer à Cabala."
"Isso foi justamente o que eu pensei de início. Mas depois apercebi-me de que podia não ser a Cabala."
"Ah, não?"
"É que a Cabala é um método hebraico." Passou a palma da mão pelo texto.
"O Apocalipse foi escrito na zona do mar Egeu. Isto significa que é possível que tenhamos de ir para o grego."
"Grego?"
"Faz todo o sentido." Preparou a caneta. "Repare, Jesus diz-se, em grego, Iesous. São seis letras. Vamos lá ver o seu valor numérico."
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"Em grego, o número de Cristo é, como vemos, um triplo oito. Isto torna 78
lógico que o número do Anticristo seja igualmente simétrico, mas inferior, e decifrável através da guematria aplicada ao grego. O triplo seis insere-se nesse perfil."
"Estou a ver."
"O que demonstra que este enigma bíblico se pode resolver recorrendo ao grego. Sendo assim, pus-me a procurar nomes cuja guematria dê um triplo seis.
Adivinhe o que encontrei."
"Não faço a mínima ideia."
"Vá lá, lance um nome."
"Não sei."
O fio de um sorriso percorreu o rosto de Tomás.
"Maomé."
Orlov abriu a boca de espanto.
"Maomé? Maomé dá um triplo seis?"
"Dá."
"Está a insinuar que Maomé é o Anticristo?"
"Não estou a insinuar tal coisa. Estou apenas a dizer que a guematria do nome de Maomé dá um triplo seis."
"Caramba!"
"Mas há um outro nome que obtém o mesmo resultado. Um nome ainda mais surpreendente, um nome que parece perfeito para desempenhar o papel da Besta, um nome que remete irresistivelmente para o Anticristo."
"Qual?"
Tomás olhou para a mesa e depois para todo o salão. Sentia-se enfastiado, o cheiro a comida deixava-o enjoado e o espectáculo de Orlov com a boca besuntada de gordura agoniava-o para além do que podia suportar.
"Oiça, já acabou o almoço?"
"Eu?", admirou-se o russo. "Já, porquê?"
"É que eu já não consigo ficar mais tempo aqui. Vamos lá para fora, está bem?"