matraquilhos ou a falar de miúdas nos tempos do liceu de Castelo Branco. Pelos vistos o Filipe tinha mesmo consultado o site dos antigos alunos do liceu e deparara-se com a mensagem que Tomás lhe havia deixado. Aquela era a resposta.
Após uma breve ponderação, Tomás pegou no telemóvel e digitou o número.
"Olá, Orlov", cumprimentou. "Tenho novidades para si."
"O que se passa?"
"Recebi um contacto do meu amigo Filipe."
"A sério? Onde está ele?"
"Receio não ter liberdade para lho dizer."
O homem da Interpol hesitou do outro lado da linha.
"Como assim? Não me pode dizer?"
"Não. Ele pediu-me confidencialidade quanto ao seu paradeiro."
"Mas então como posso avançar na investigação?"
"Terei de ser eu a fazê-la."
"Você?", admirou-se Orlov. "Mas você nem sequer é polícia..."
"Oiça, o Filipe aceita encontrar-se comigo desde que eu mantenha confidencial o local onde ele está. Se eu assumir esse compromisso, é para o respeitar, percebe?"
"Hmm."
"Então o que faço? Assumo o compromisso ou não?"
O russo manteve-se um instante calado, a avaliar a situação.
"Não me parece que haja alternativa, pois não?"
"Você é que sabe."
"Olhe, aceite", decidiu Orlov. "Encontre-se com ele e saque toda a informação que for possível."
"Muito bem", concordou Tomás. "Vou precisar de dinheiro para a viagem."
"Em que país está ele?"
"Não lhe posso revelar isso."
Orl ov riu-se.
"Não faz mal", disse. "Era eu a ver se pegava." Mudou de tom. "Vamos transferir dinheiro para a sua conta, está bem? Você pega nesse dinheiro e faz dele o que tiver de fazer, sem necessidade de apresentar contas ou entregar facturas. Desse modo mantém o sigilo quanto à sua deslocação. Está bem assim?"
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"Parece-me perfeito."
"Então muito bem", concluiu o russo, despedindo-se. "Diga-me alguma coisa quando voltar."
"Espere", exclamou Tomás.
"O que é?"
"Ainda não lhe contei tudo."
O agente da Interpol pareceu desconcertado.
"Ah, desculpe. Julguei que tinha dito que não podia, para já, revelar nada sobre o e-mail do seu amigo."
"E não posso. Mas tenho outras novidades."
"O quê?"
"Acho que já percebi o sentido da mensagem que o inglês enviou ao Filipe."
Orlov soltou uma nova gargalhada.
"Você é mesmo um craque", exclamou. "A sério? Já decifrou aquela trapalhada?"
"Descodifiquei", corrigiu Tomás. "A mensagem não é uma cifra, é um código. As cifras decifram-se, os códigos descodifi-cam-se."
"Você acha que é um código?"
"Sem dúvida."
"E qual a mensagem que ele esconde?"
O historiador inclinou-se sobre a secretária e pegou no grosso volume que acabara de ler.
"O sentido do código é revelado pela Bíblia."
"A sério?"
"Sim. E adivinhe em que parte da Bíblia."
"Não faço ideia."
"No Apocalipse. A resposta está no Apocalipse." Riu-se. "Veja só o meu azar. Como a citação se encontra no último
texto do Novo Testamento e eu comecei pelo princípio, tive de ler a Bíblia toda até chegar a ela."
"Não fez mais do que a sua obrigação", impacientou-se o russo. "Diga-me lá qual é a mensagem que a frase esconde."
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Tomás abriu a Bíblia pousada sobre a mesa e folheou as últimas páginas até chegar ao Livro da Revelação.
"Para entender o sentido da mensagem é preciso compreender o contexto em que ela aparece inserida", disse. "Você já leu o Apocalipse?"
Orlov soltou um estalido exasperado com a língua.
"Você acha-me com cara de beato ou quê? Pensa que tenho tempo para ler essas coisas?"
"Então, se nunca leu o Apocalipse, deixe-me fazer-lhe um enquadramento.
Como já lhe disse noutro dia, este texto é assinado por João, supostamente o apóstolo." Passou os olhos pelas primeiras linhas das páginas abertas à sua frente.
"Começa por dizer que Jesus Cristo apareceu diante de João e lhe entregou mensagens para sete comunidades cristãs na Ásia Menor." Avançou umas páginas.
"A coisa torna-se muito interessante logo a seguir, quando João é levado para o céu."
"O apóstolo voou para o céu?", gracejou Orlov. "Foi em executiva ou turística?"
"Ascendeu ao céu", retorquiu Tomás, ignorando a graçola. Fixou os olhos no parágrafo. "Está aqui escrito o seguinte", disse, começando a ler o texto. "«Olhei e vi uma porta aberta no Céu: e a primeira voz que ouvi, e que me falava, como o som de uma trombeta, disse: Sobe aqui e mostrar-te-ei as coisas que devem acontecer depois destas. Logo fui arrebatado em espírito e vi um trono no Céu, no qual Alguém estava sentado.»" Ergueu os olhos das linhas. "Esse Alguém era, está claro, Deus."
"Deus? João diz que viu Deus?"
"Sim."
"E como é Ele? Tem grandes barbas brancas?"
"O Deus descrito por João no Apocalipse não é antropomórfico. Repare na descrição que o autor faz d'Ele." Voltou ao mesmo parágrafo. "«O que estava sentado era, na aparência, semelhante à pedra de jaspe e de sardónio; e um arco-íris rodeava o trono, semelhante à esmeralda.»" Saltou uma linha. "«Do trono saíam relâmpagos e trovões.»"
"Mas que raio de Deus é esse?"
"É o Deus que João diz ter visto. Não é uma pessoa, mas luz e cor e sons."
"Tudo isso é uma alucinação, não?"
"Talvez", admitiu Tomás. "Mas não creio. Este texto é muito pensado, sabe?"
"Porque diz isso?"
"Por causa da sua estrutura. As cenas são descritas com muito detalhe e mostram influência de escritos judaicos, em particular dos de Daniel. A estrutura 99
revela-se planeada e joga com padrões numéricos, o que não é característico das alucinações."
"Como a história do triplo seis?"
"Isso. O triplo seis não é uma alucinação. Como já vimos, trata-se da guematria do nome de Nero. Logo, este texto é pensado, não é resultado de uma alucinação."
"Compreendo", aceitou Orlov. Mudou de tom. "Dizia então você que João subiu ao céu e viu Deus. E depois? O que aconteceu?"
Tomás regressou ao texto.
"João escreve o seguinte: «Vi, na mão direita do que estava sentado sobre o trono, um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos.»"
"Um livro com sete selos?"
"Sim. Na verdade, intitula-se o Livro dos Sete Selos. Na descrição de João, Cristo dirigiu-se ao trono e recebeu de Deus esse livro. Foi nessa altura que Jesus, apresentado com a forma de um cordeiro, começou a quebrar os selos um a um.
Orlov mostrava-se agora inteiramente absorvido pela narrativa.
"E então?"
"Os primeiros quatro selos fizeram aparecer quatro cavaleiros destruidores.
São os quatro cavaleiros do Apocalipse. Um é um conquistador, os outros são portadores da fome, da guerra e da morte. O quinto selo fez aparecer os mártires e o sexto trouxe um terramoto e outros terríveis cataclismos destinados a punir os pecados da humanidade." Tomás fez uma pausa. "E então que o texto apresenta a frase fatídica."
"Qual delas?"
"A frase que consta da mensagem que vocês interceptaram na Internet."
"Qual mensagem? A do inglês?"
"Sim." Tomás pousou o indicador na linha e leu. "«Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no Céu.»"
A frase ecoou na mente de Orlov. Fora de facto essa a mensagem que James Cummings enviara a Filipe Madureira.