"Muito bem", assentiu. "Na Bíblia vem escrita essa frase. Cristo quebrou o sétimo selo do Livro dos Sete Selos. E depois? O que aconteceu depois?"
O historiador fechou a Bíblia pousada sobre a sua secretária e respirou fundo.
"João viu trovões, relâmpagos e terramotos por toda a parte. Na terra e no 100
mar são lançados fogo, saraiva e sangue, tornando inabitável um terço do planeta.
Cai uma estrela do ceu e o Sol fica obscurecido pela fumarada. Numa extinção em massa, parte da humanidade e da vida desaparecem." Fez uma pausa. "Em resumo, começa o apocalipse."
Orlov avaliou por um instante a descrição.
"Quando é que isso acontece?"
"Acontece quando aparece na Bíblia a citação usada na mensagem que vocês interceptaram." Recitou de memória. "«Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no Céu.»"
O russo fez um estalido com a língua.
"Caramba", exclamou. "O seu instinto estava certo."
"Pois estava", disse Tomás. "Já viu o que esta frase desencadeia?"
"O fim do mundo, meu caro professor. O fim do mundo."
XII
O segurança, um homem calvo de cabeça luzidia e corpo entroncado, mediu-o com suspeição, dissecando-o dos pés à cabeça, os olhos perscrutadores como raios X. Ao constatar que se tratava de um estrangeiro, pareceu descontrair-se; aceitou os setecentos e cinquenta rublos e com a cabeça fez-lhe sinal de que entrasse. Tomás agradeceu, empurrou a porta e penetrou no Night Flight.
Um ambiente quente e sofisticado acolheu-o no interior do mais famoso clube para homens da cidade. Um empregado impecavelmente vestido aproximou-se de imediato.
"Dobriy vetcber", cumprimentou, cerimonioso.
"Boa noite", devolveu Tomás em inglês. Hesitou, em busca das palavras certas que memorizara no hotel. "Vy govorite... po-angliyski?"
O empregado sorriu.
"Da", assentiu. "Todos aqui falamos inglês." Fez um gesto que abarcou todo o Night Flight. "Deseja ir ao restaurante ou ao night club?"
"Ao night club, por favor."
O homem apontou para um canto e Tomás dirigiu-se para lá. Desceu umas escadas em caracol e deu com um bar em tons dourados, uma parede espelhada corrida a sofás forrados a negro, a outra escondida por um longo bar. Uma música suave flutuava no ar e o local tinha um aspecto distinto, como se se tratasse de um clube para cavalheiros de alta sociedade. Mas os pequenos grupos que formigavam 101
pelo night club traíam aquela aparência requintada; os homens apresentavam o aspecto exuberante dos novos-ricos, ostentando álcool e rublos e poder e testosterona, e as mulheres, muito mais novas, mimavam-nos de atenções, todas elas belas, cintilantes e, sobretudo, disponíveis.
O recém-chegado dirigiu-se ao balcão e ergueu a mão para chamar a atenção do homem de smoking que preparava as bebidas.
"Zdrávstvuyte" , saudou o homem, perguntando-lhe o que queria tomar.
"Tcbego zhelayete?"
"Hello", cumprimentou Tomás. Consultou o nome que trazia escrito num papel. "Posso falar com Nadezhda?"
"Nadezhda?"
"Sim."
O homem esboçou um pequeno sorriso, como se aquele nome tivesse um significado secreto que os membros de uma mesma confraria instantaneamente entendiam, e apontou para um varandim por cima.
"Está ali."
Tomás ergueu a cabeça e viu uma mulher ruiva quase nua a dançar, os seios arrebitados e firmes, o corpo delgado e
insinuante, um estreito tecido escarlate a servir de calcinhas. Um foco de luz incidia na sensual dançarina, projectando sobre ela sombras sumptuosas e cores lascivas, a carne lúbrica e transpirada.
O recém-chegado cliente baixou os olhos e questionou o homem do bar.
"Esta é que é a Nadezhda?"
"Da", confirmou o empregado. Arqueou as sobrancelhas, como quem esconde duplos sentidos por entre as palavras. "Quer que ela venha ter consigo?"
"Bem... sim", disse Tomás, corando com a insinuação. "Preciso de falar com ela."
"A Nadezhda está quase a terminar o seu número." Piscou o olho, cúmplice.
"Quando ela acabar eu digo-lhe que tem um cliente à espera." Fez um gesto para as garrafas arrumadas ao longo do bar. "Enquanto aguarda, quer tomar alguma coisa?"
"O que tem aí?"
"Whisky, konyak, vodka..."
Tomás contemplou as garrafas.
"Acho que uma vodka será, talvez, o mais apropriado."
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"Pura ou aromatizada?"
"Hmm...", hesitou. "Não sei, o que me aconselha?"
O homem do bar pegou numa garrafa âmbar e deitou a vodka num copo.
"Esta vodka é aromatizada. Chama-se Okhotnichya, a vodka dos caçadores, e inclui uma mistura de gengibre e cravo-da-índia." Estendeu-lhe o copo. "Beba tudo de uma vez. À nossa maneira."
O cliente analisou o líquido que bailava no copo com uma expressão relutante. Sentou-se num espaço vazio no banco corrido ao longo da parede, por baixo do espelho, e decidiu seguir o conselho. Em Roma, sê romano, pensou.
Fechou os olhos e, antes que perdesse a coragem, engoliu a vodka de uma só vez.
Foi como se um vulcão tivesse irrompido nas suas entranhas.
"Deseja a minha companhia?"
A voz feminina, aveludando o inglês com um exótico sotaque eslavo, fez Tomás erguer os olhos. Diante dele, obser-vando-o do outro lado da mesinha, estava a beldade ruiva envolta num voluptuoso manto de seda púrpura, quase berrante. Os seus olhos eram de um azul líquido, grandes e expressivos, e tinha lábios espessos, como gomos apetecíveis, à Nastasja Kinski.
Vencendo a surpresa, o português ergueu-se e, desajeitado, estendeu a mão com tal brusquidão que derrubou o copo de vodka.
"Olá", disse, para quase se assustar com o copo que inadvertidamente atirara ao chão. "Ooops, desculpe."
A dançarina reprimiu uma risadinha.
"Posso sentar-me?"
"Sim, sim, com certeza."
Tomás afastou-se para lhe dar lugar e, sem querer, empurrou a mesinha, que caiu para o lado com grande estrondo. Fez-se um silêncio súbito nas conversas dentro do night club; os outros clientes pararam momentaneamente para verem o que se passava ali.
"Ah, caramba", exclamou o historiador, levando as mãos à cabeça quando viu a mesa deitada no chão. "Estou mesmo desastrado, não sei o que se passa.
Desculpe."
Nadezhda soltou uma gargalhada.
"O senhor é sempre assim?"
"Não, de modo nenhum", assegurou Tomás. "Deve ser a sua presença.
Quando aqui vim não estava nada à espera de encontrar alguém assim tão... enfim...
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tão bonita."
A rapariga atirou os cabelos para trás, divertida.
"E esta? Saiu-me um Don Juan!"
O português contraiu o rosto, aflito, receando ter-se dado a demasiadas liberdades.
"Oh, perdão", balbuciou. "Imagino que esteja farta de ouvir os homens dizerem-lhe sempre a mesma coisa."
Os empregados do night club acorreram ao local e puseram tudo em ordem; a mesa voltou ao lugar e o chão onde se derramara a vodka foi limpo, o que permitiu o reatar do habitual burburinho das conversas que serviam de fundo à música ambiente. Foi servida mais vodka a Tomás e uma taça de champanhe pedida por Nadezhda. Quando o empregado se afastou, a bailarina ajeitou o insinuante manto de seda de modo a destapar os ombros e exibiu a pele ebúrnea e a curva arrebitada dos seios.