"Às vezes."
O português hesitou antes de fazer a pergunta seguinte.
"Eles pagam-te?"
A russa cravou os olhos azuis nos verdes dele e teve dificuldade em reprimir a irritação.
"Nu yo-o-o!", praguejou. "O que te interessa isso?"
"Nada", apressou-se ele a dizer, embaraçado. Respirou fundo. "Quer dizer, interessa-me. Gostava de saber."
"Para quê?"
"Bem, eu fui para a cama contigo, não fui? Gosto de saber essas coisas."
"Porventura cobrei-te algum dinheiro?"
"Não, claro que não."
"Então? Qual é o teu problema?"
"Gostava de saber", insistiu ele.
Nadezhda afastou os olhos e fitou a luz que jorrava pela entrada do café.
"Sim, pagam."
Fez-se silêncio.
"Quanto?"
"Trezentos dólares por hora, mil dólares uma noite." Voltou a encará-lo, os olhos a chisparem. "Satisfeito?"
Tomás mordeu o lábio.
"Porque o fazes?"
A russa encolheu mais uma vez os ombros.
"Pelo dinheiro."
"Precisas assim tanto de dinheiro?"
112
"Preciso de dinheiro para viver bem e preciso de dinheiro para os estudos.
Não quero andar a lavar pratos."
"Ai é? Ainda estudas?"
"Claro, na universidade. Estudo de dia e trabalho à noite."
"E estudas o quê?"
"Climatologia."
"Hmm... queres ser meteorologista?"
"Sim. Estou no último ano."
O empregado trouxe as cervejas e o bif stroganov, as tiras de carne que começaram a comer com kasba, ou trigo-mourisco cozido, e pão escuro. A conversa sobre a vida de Nadezhda tornou o ambiente um pouco pesado e Tomás sentiu que lhe cabia a si a responsabilidade de aligeirar a atmosfera, afinal fora ele que levara o diálogo para aqueles terrenos pantanosos.
"Como é que conheceste o Filipe?", perguntou quando já ia a meio do prato.
"Na faculdade."
"Aqui em Moscovo? Ele andou aqui na faculdade?"
"Não, ele conhecia cá uns professores e foram eles que o trouxeram."
"Ah, bom. Mas o que veio ele cá fazer?"
"É um projecto especial que ele tem, uma coisa internacional. Precisava de pessoas para trabalharem no projecto e um professor chamou-me e apresentou-me.
Eu tinha acabado de entrar na faculdade e agarrei logo a oportunidade."
"Começaste a trabalhar com o Filipe?"
"Sim, ele mandou-me para a Sibéria durante o Verão."
"Para a Sibéria? Fazer o quê?"
"Umas medições meteorológicas. Era tudo parte do projecto."
"Mas que raio de projecto era esse?"
Nadezhda suspirou.
"Agora não me apetece falar sobre isso." Consultou o relógio. "B/m, já são quatro horas. É melhor irmos andando."
O português engoliu a cerveja de um só trago e fez um gesto na direcção do empregado, a pedir a conta.
"Ainda não me disseste para onde vamos", observou, enquanto o empregado escrevinhava a soma.
"Yaroslavsky."
113
"Onde é isso?"
"É uma estação de comboios aqui em Moscovo."
"Vamos apanhar o comboio, é?"
"Da."
O empregado apresentou a conta e Tomás passou-lhe os rublos para a mão.
"Mas qual é o nosso destino?"
Nadezhda tirou da carteira o envelope que o paquete do hotel lhe entregara nessa manhã e abriu-o, exibindo dois bilhetes.
"Ainda vais ter de me pagar mil e trezentos dólares por isto. São lugares de spalny vagou" Cheirou os bilhetes, como se fossem perfumados. "Primeira classe."
"Vamos onde?"
"Vamos apanhar o Rossiya, número 2, às cinco e um quarto em Yaroslavsky."
"O Rossio?"
"O Rossiya, número 2. Nunca ouviste falar?"
"Eu não."
Mal-humorada, Nadezhda meteu os bilhetes de novo no envelope, guardou-o outra vez na carteira, levantou-se e agarrou no saco de viagem, pronta para sair.
"É o Transiberiano, idiota."
XIV
As carruagens azuis e vermelhas do Transiberiano iniciaram a marcha às dezassete horas e dezasseis minutos, como anunciado no painel da estação de Yaroslavsky, na mesma altura em que Tomás e Nadezhda se instalavam na sua cabina de luxo, a meio do spalny vagon.
Já com o comboio a ganhar velocidade, arrumaram a mala e inspeccionaram o compartimento que lhes fora destinado. Tratava-se de um agradável cubículo de dois lugares, pequeno mas faustosamente decorado, as camas apresentando os len-
çóis engomados com cuidado e abertos de modo convidativo, a ponta desdobrada sobre o cobertor macio; as almofadas encontravam-se pousadas com o ângulo para cima e a meio havia uma mesinha, colada a uma grande janela, o vidro adornado com um cortinado carmesim. A cabina estava toda forrada a madeira e era mais confortável do que Tomás imaginara. As camas encheram-no até de ideias, na sua mente tornava-se claro que aquele delicioso compartimento se iria transformar num escaldante ninho de amor, mas quando ele, ardendo de desejo, a quis arrastar para os 114
beliches, ela virou o rosto e resistiu.
"Agora não, Tomik", disse a russa, observando a porta de relance. "O
provodnik pode aparecer a qualquer altura."
"Quem?"
"O provodnik. O revisor."
Não foi o provodnik que apareceu pouco depois para verificar os bilhetes, mas uma provodnitsa de meia-idade e ar cansado. A mulher entregou-lhes as toalhas em sacos de plástico selados, recebeu uma pequena gratificação e, antes de se despedir, disse que, em caso de necessidade, poderia ser encontrada no compartimento na frente do comboio, e prometeu manter o vagão limpo durante toda a viagem.
Quando ficaram a sós, os dois passageiros decidiram vistoriar a carruagem.
Percorreram o corredor e verificaram que metade das cabinas do spalny vagon se encontravam ocupadas. Os passageiros da primeira classe eram quase todos turistas; havia alguns ocidentais espalhados pela dezena de cabinas da carruagem, mas a maior parte dos viajantes eram asiáticos.
"Japoneses", esclareceu Nadezhda. "Vão para Vladivos-toque."
Os quartos de banho encontravam-se ao fundo do corredor, um em cada ponta, e pareceram-lhes asseados; dispunham de uma retrete e um bacio em alumínio. Ali perto encontraram um samovar de onde jorrava água a escaldar para o chá ou o café.
Saltaram para a carruagem seguinte e depararam com um snack-bar, mas a comida exibida no balcão, umas sanduíches sebentas e uns fritos de aspecto duvidoso a que se juntavam umas sopas aguadas, suscitaram em ambos um esgar de repulsa.
"Isto vai ser duro", constatou ele sombriamente.
Saíram daquele vagão com pouca vontade de se aventurarem pelos dúbios labirintos da oleosa gastronomia ferroviária. Preferiram explorar o resto do Transiberiano e passaram pelas carruagens da Cupe, a segunda classe, antes de regressarem à sua cabina.
Ao fim de três horas de viagem, uma voz soou em russo por toda a carruagem. Acto contínuo, o comboio começou a abrandar.
"O que aconteceu?", perguntou Tomás.
"Estamos a aproximar-nos de Vladimir", explicou Nadezhda. "Tens aí dinheiro, não tens?"
O historiador abriu a carteira e passou-lhe algumas centenas de rublos para as 115
mãos.
"Para que precisas do dinheiro?"
"Gostaste da comida que viste ali no vagão-restaurante?"