"Sabes o que é isto?"
"Não."
"São as iniciais de partes por milhão em volume, ou ppm. É uma forma de medir o dióxido de carbono na atmosfera. Estabelece a relação entre o número de moléculas de gás com efeito de estufa e o número total de moléculas de ar seco. Por exemplo, 200 ppm significa que há duzentas moléculas de gás com efeito de estufa em cada milhão de moléculas de ar seco."
"Muito bem. E então?"
"O nosso planeta teve, nos seus primórdios, uma atmosfera repleta de dióxido de carbono, como Vénus, o que impossibilitava o aparecimento de vida animal em terra. Acontece que o mar e as plantas são absorventes naturais do dióxido de carbono, pelo que ambos começaram a actuar e, ao longo de milhões de anos, fizeram diminuir o dióxido de carbono na atmosfera. Os estudos paleoclimáticos mostram que o dióxido de carbono é responsável por metade das alterações térmicas do passado. Quando havia muito dióxido de carbono na atmosfera, a temperatura tendia a subir. Quando diminuía, a temperatura tendia a baixar. Ora há quinhentos anos o dióxido de carbono atingiu o mínimo de 270 ppm. Mas a expansão da presença humana, com a consequente destruição das florestas e a queima de lenha, a que se acrescentou depois a queima de carvão e de petróleo para obtenção de energia, fez aumentar o dióxido de carbono até aos 380 ppm actuais."
"Isso é muito?"
"É só o valor mais alto dos últimos seiscentos e cinquenta mil anos."
"Caramba. E dizes tu que continua a crescer?"
"Continua, e muito! Se solidificássemos todo o dióxido de carbono que lançamos anualmente para a atmosfera, criaríamos uma montanha com dois quilómetros de altura. Uma montanha por ano, Tomik." Suspirou. "Mas o pior vai acontecer quando um dia cruzarmos o valor crítico."
"Qual valor crítico?"
"Os 550 ppm." Abriu os braços, como se abraçasse um grande objecto.
"Imagina que estás no topo de uma montanha e começas a empurrar uma grande pedra, primeiro com pouca força, mas aumentando-a gradualmente. De início a pedra não se mexe, não é? Mas, quando a força com que a empurras cruzar um valor crítico, a pedra começa a mexer. Primeiro devagar, até que ganha uma dinâmica própria e já nem precisa de ser empurrada para rolar pela encosta abaixo, provocar 130
uma avalanche e destruir uma aldeia lá ao fundo do vale." Estreitou os olhos.
"Repara, foi ao cruzar um valor crítico de força que consegui fazer mexer a pedra.
Depois a catástrofe ocorreu já sem a minha ajuda." Bateu com o dedo na mesa. "É
disto que estou a falar. A medida que lançamos carbono para a atmosfera estamos a empurrar o clima no sentido de se cruzar um valor crítico. A maior parte dos cientistas acha que o valor crítico são os 550 ppm de carbono. Quando cruzarmos esse valor, assamos."
"Temos actualmente 380 ppm, não é?", constatou Tomás. "Isso significa que ainda estamos longe dos 550 ppm." Encolheu os ombros. "Temos ainda tempo mais do que suficiente para parar antes de atingirmos esse valor."
"Receio que não seja assim tão simples."
"Então?"
"Em primeiro lugar, ninguém sabe ao certo qual o valor crítico. Há quem pense que já o cruzámos e que a catástrofe é agora inevitável e há quem ache que o limiar crítico está nos 400 ou nos 450 ppm, embora o consenso científico aponte de facto para os 550 ppm. Mas, mesmo que o valor crítico seja este, temos de nos lembrar de que o efeito é cumulativo. Se, graças a um qualquer milagre, conseguíssemos parar já hoje a emissão de dióxido de carbono, mesmo assim a sua concentração atmosférica iria continuar durante um milénio, uma vez que esse é o tempo que o mar e as plantas demoram a reabsorver esta quantidade do composto."
O rosto de Tomás contraiu-se numa expressão de espanto.
"Quanto?"
"Um milénio."
"Porra."
"Repara que, como o efeito é cumulativo, estamos a sentir agora a concentração gerada nos últimos cinquenta anos. A actual concentração será sentida nos próximos anos. Se parássemos hoje a emissão de dióxido de carbono, ainda assim a concentração prosseguiria à média de um e meio ppm por ano, até atingir os 450 ppm em 2100." Ergueu o indicador, em advertência. "Isso se parássemos hoje."
"Estou a ver."
"O pior é que não conseguimos parar hoje. A China está a industrializar-se e a índia também, e esses dois países precisam dos combustíveis fósseis para o seu desenvolvimento. Por outro lado, os grandes produtores mundiais de dióxido de carbono, os Estados Unidos e a Europa, habituaram-se aos confortos proporcionados pela actual economia energética e não a dispensam, uma vez que têm de assegurar a continuação do seu crescimento económico. E há ainda a nossa Santa Rússia, o segundo maior produtor do mundo de dióxido de carbono, com os seus graves problemas de poluição e com a sua tecnologia obsoleta, que continuará a emitir este composto como quem produz pãezinhos. Tudo isto somado, sabes no que resulta?"
131
"Em mais calor."
"Em muito mais calor", reforçou ela, acentuando o muito. "Os estudos paleoclimáticos mostram que no plioceno, quando os níveis de dióxido de carbono andavam pelos actuais 380 ppm, a temperatura do planeta era mais quente quase três graus. Mas, como a tendência mundial é de aceleração nas emissões de dióxido de carbono, temos que nos preparar para algo de muito mais grave. Ao actual ritmo, a concentração atmosférica deste composto atingirá os 1100 ppm em 2100."
"Meu Deus!"
"Os modelos climáticos consideram imperativo que estabilizemos a situação nos 450 ppm. Isso traria um aquecimento moderado, com alguma linha de costa submersa pelo mar, um aumento da desertificação, uma intensificação da violência das tempestades e mais incêndios florestais, mas nada de demasiado sério.
Poderíamos sobreviver. O problema é que os 450 ppm já não são possíveis, uma vez que só as nossas actuais emissões vão cumulativamente elevar a concentração de dióxido de carbono até esse valor em 2100. Ora, como às actuais emissões temos ainda de acrescentar as futuras, eu diria que a situação já está descontrolada."
Tomás mordeu o lábio, angustiado.
"E de que maneira", assentiu sombriamente. "Estamos tramados."
"Percebes agora qual a ligação entre o negócio do petróleo e o aquecimento do planeta?"
"Sim."
Nadezhda contemplou melancolicamente a paisagem que desfilava em corrida para lá da janela. A taiga estendia-se pela linha do horizonte num imenso e plácido oceano de coníferas, as copas cónicas e estreitas apontadas para o céu, eram agulhas verdes espetadas no vazio azul. De olhos presos na floresta imensa, imaginou o terrível destino a que aquele maravilhoso pulmão permanecia alheio, imaginou o fogo que um dia o iria consumir, como se aquelas árvores esbeltas fossem vítimas inocentes alinhadas para a fogueira, condenadas às chamas eternas do inferno que se acercava, furtivo e impiedoso.
"O Filhka tinha uma maneira terrível de descrever o que nos espera ainda neste século." Abanou a cabeça. "Usava uma palavra assustadora."
"O quê?"
A russa respirou fundo e voltou a encarar Tomás.
"Apocalipse."
XVI
Tomás encontrava-se imerso num livro de poemas de Fernando Pessoa, que 132
providencialmente trouxera para passar o tempo, quando uma voz em russo encheu os altifalantes do Transiberiano, como acontecia sempre que se aproximavam de uma estação. Acto contínuo, sentiu Nadezhda levan-tar-se e tirar a mala do armário.