"Khuzhir", anunciou Nadezhda.
Tomás animou-se no assento.
"Chegámos?"
"Quase."
A camioneta imobilizou-se na praça principal de Khuzhir e o motor emitiu um ronco final antes de se calar definitivamente, como o derradeiro suspiro de um moribundo. Os passageiros desaguaram pela porta numa grande excitação e foram acolhidos por vizinhos e conhecidos numa animada algazarra, parecia que a aldeia inteira tinha acorrido à chegada da camioneta em busca das novidades da civilização. Concentraram-se todos diante da bagageira para retirar os produtos que tinham ido comprar a Irkutsk e a confusão era tal que Tomás e Nadezhda quase tiveram de lutar para recuperar as suas malas.
Já com a bagagem na mão, a russa foi ao Gastronom, a mercearia da praça, e saiu com um homem de meia-idade.
"Arranjei boleia", anunciou. "Mas vais ter de pagar dez dólares, Tomik."
O homem levou-os para um velho Lada meio enferrujado, parecia um pequeno Fiat da década de 1970, e convidou-os a entrar. Os três acomodaram-se no espaço apertado e o automóvel fez-se à estrada com um estranho fragor no motor e o escape a libertar uma densa fumarada negra. Não tiveram de andar muito, porém; 139
apenas atravessaram uma aldeia e, quatro quilómetros depois de Khuzhir, chegaram a um acampamento yurt ao pé do lago, onde o carro os deixou.
Os yurts tinham sido erguidos junto à praia, como cogumelos brancos espalhados à beira da baía de Ulan-Khushin. Eram frágeis construções cilíndricas com a estrutura de madeira tapada por uma cobertura de tela clara, como uma tenda, a entrada escondida pelo que parecia ser um tapete com motivos geométricos carmesim; o telhado cónico era coberto pela mesma tela e tinha vagamente o aspecto de um capacete mongol. Algumas pessoas deambulavam pelo acampamento, a maior parte turistas ocidentais, mas também se avistavam russos e buryats autóctones.
Pararam um instante, como que extasiados a apreciar a beleza exótica daquele magnífico recanto. Tudo ali aparentava serenidade, o tomilho desabrochado em flor, os larícios pujantes; parecia um lugar saído de um conto de fadas. Ouviam-se vozes e o pipilar das aves, mas era o Baikal que dominava o cenário. O ondular suave das águas afagava docemente a areia branca da praia, o lago a cintilar num fascinante azul-turquesa; dir-se-ia que tinham chegado às Caraíbas da Ásia.
"Então, Casanova?", perguntou uma voz. "Por aqui?"
As palavras foram pronunciadas em português e Tomás identificou a sua alcunha dos tempos do liceu, quando todos o conheciam como o maior pinga-amores de Castelo Branco. Voltou-se e encarou o homem que falara atrás de si.
Era Filipe.
XVII
O Sol deitava-se devagar por detrás dos montes, à esquerda, pintando o poente de um violeta luminoso; mas o fim de tarde em Olkhon assumia sobretudo o frio tom do azul-acinzentado, obscurecendo as montanhas nevadas e a taiga para lá de Maloye Morye, o estreito que separa a ilha da costa continental que cerca o Baikal.
Sentados em cadeiras dispostas sobre a areia, os dois portugueses contemplavam as ondas dóceis do lago com duas bebidas na mesa, um kvas semialcoólico para Tomás, um mors escarlate para Filipe. Nadezhda tinha ido dar uma volta ao acampamento, deixando-os sós a trocar memórias dos seus tempos no liceu, reminiscências de rapazes que partilhavam cumplicidades antigas, narrativas das tropelias e namoricos que tinham valido a Tomás a sua alcunha; e foi durante uma pausa no relato galhofeiro de episódios quase esquecidos, quando já parecia que não tinham mais assunto para alimentar a conversa e as palavras lhes morriam na boca em silêncios embaraçados, que o recém-chegado tocou por fim no tema que ali o trouxera.
"Como é que vieste parar a este sítio?"
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Filipe fez um estalido com o canto dos lábios.
"É uma longa história", disse, como se a tarefa de a contar fosse demasiado grande para si. "E tu, Casanova? O que estás tu aqui a fazer?"
"É outra longa história", riu-se Tomás, ecoando a resposta que ouvira.
"Gosto de longas histórias, sobretudo quando não são minhas. Conta lá a tua."
Tomás observou com atenção o seu velho amigo do liceu. Filipe mantinha a expressão de garoto traquinas que sempre lhe bailara nos olhos pálidos, mas havia já rugas a cortar-lhe o rosto e o cabelo rebelde aloirado tinha-se tornado parcialmente grisalho; era como se o tivessem metido numa máquina do tempo, num dia parecia fresco, no outro apareceu gasto; de um modo estranho era simultaneamente a mesma pessoa e alguém diferente.
"Não há muito para contar, mas o pouco que sei é perturbador", observou Tomás, regressando ao presente. Afinou a voz e concentrou-se no que tinha a dizer.
Era chegado o momento de abrir o jogo. "Em 2002 foram assassinados dois cientistas quase ao mesmo tempo, um americano na Antárctida, um espanhol em Barcelona. Ambos tinham o teu nome nas agendas e havia um papelinho com um triplo seis ao lado dos seus corpos baleados." Observou Filipe de relance, avaliando o modo como ele reagia ao que lhe estava a relatar. Sem surpresa, viu-o endireitar o corpo, o sorriso a evaporar-se-lhe do semblante, o rosto a fechar-se com gravidade.
"Na altura em que eles morreram, tu desapareceste de circulação e não voltaste a ser visto. Nas agendas das vítimas constava igualmente o nome de um cientista inglês que também se evaporou nessa altura. Nunca mais ninguém ouviu falar de vocês."
Filipe parecia-lhe tenso a escutar a narrativa, quase alerta, não havia dúvida de que o assunto lhe dizia respeito. "Há algumas semanas, e depois de muito tempo sem uma única pista sobre o vosso paradeiro, foi interceptado um e-mail que o inglês te enviou com uma mensagem um pouco estranha. A mensagem mencionava o sétimo selo. Ora, consultando o Novo Testamento, verificamos que o triplo seis e o sétimo selo constituem dois elementos simbólicos de grande importância no último dos textos bíblicos, o Apocalipse." Abriu as mãos com as palmas para cima, como se expusesse uma evidência. "Como deves compreender, todos estes factos fizeram levantar muitos sobrolhos e suscitaram imensa curiosidade sobre o que tens a dizer."
Filipe mordeu o lábio e olhou-o, perscrutador.
"Curiosidade por parte de quem?"
"Ora, da polícia, claro."
"Qual polícia?"
"A Interpol."
O amigo estudou-o inquisitivamente.
"Tu agora és polícia?"
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Tomás soltou uma gargalhada.
"Claro que não. Lecciono História na Universidade Nova de Lisboa."
"Então qual é o teu papel nesta história?"
"Os tipos da Interpol contactaram-me para os ajudar a deslindar o caso. Tão simples quanto isso."
"Mas porque te contactaram justamente a ti? O que tens tu de tão especial que lhes possa ser útil?"
"Eles sabiam da nossa relação nos tempos de Castelo Branco. Além do mais, e como criptanalista e perito em línguas antigas, precisavam de mim para desvendar esse mistério do triplo seis bíblico."
"Deixa-me ver se compreendo." Apontou-lhe o dedo. "Tu estás a trabalhar para a Interpol?"
"Sim, fui contratado para os assessorar nesta investigação."
"E é por isso que estás aqui?"
"Sim."
Filipe calou-se um instante, avaliando a situação.
"Confesso que tudo isto é um pouco inesperado, não te imaginava a par de toda esta trapalhada." Ergueu o sobrolho e fitou o amigo. "Diz-me uma coisa, achas que eu matei os dois cientistas?"