Tomás ajeitou-se na poltrona e espreitou pela janela, como se procurasse orientar-se.
"Estou um pouco confuso", disse.
"Porquê?"
"Considerando o contributo dos combustíveis fósseis para o aquecimento global, o fim do petróleo deveria ser uma coisa boa, não é?"
"Deveria ser, e é."
"Ah, sim? Mas de que nos serve travar o aquecimento do planeta se, com o fim do petróleo, a nossa civilização for destruída e voltarmos todos à Idade Média?"
"O fim do petróleo ajuda a pôr termo à tendência de aquecimento global, e isso é indubitavelmente bom. Embora seja preciso sublinhar que os efeitos da cessação de emissões de carbono só se farão sentir ao fim de umas décadas, devido à acção cumulativa do aquecimento, como já te expliquei. Mas todas as moedas têm duas faces e o preço de pôr fim às emissões de carbono poderá ser demasiado elevado para a nossa civilização."
"Então, o que podemos fazer?"
Filipe sorriu.
"Voltamos à pergunta do nosso grupinho em Quioto", observou. "Quando nos conhecemos no Japão, eu, o Howard, o Blanco e o James sabíamos que as emissões de combustíveis fósseis teriam de parar, sob pena de o planeta fritar no prazo de algumas décadas, mas o problema que se punha era justamente esse: qual a alternativa aos combustíveis fósseis? Sabíamos também que a indústria do petróleo movimenta imenso dinheiro e não tínhamos ilusões quanto à nossa impotência perante os gigantescos interesses que estavam em jogo. A situação é, pois, de grande delicadeza. Tal como as coisas se apresentam, o cenário diante de nós é verdadeiramente apocalíptico. Estamos perante a pior de todas as perspectivas. Por um lado, vemos a temperatura do planeta subir desmesuradamente, desencadeando fenómenos descontrolados. É possível que estejamos prestes a cruzar valores críticos 257
de temperatura, para além dos quais a Terra se torna um verdadeiro inferno. E, no mesmo momento em que isso acontece, a grande produção de petróleo irá decair bruscamente, sem aviso.
As políticas secretistas da OPEP, o interesse de toda a indústria petrolífera em prolongar o status quo o mais tempo possível, a gestão política segundo curtos ciclos eleitorais e a perversão dos preços do petróleo no mercado mundial estão a camuflar o brutal tombo de produção que se avizinha. Repara que o grande problema não é o petróleo acabar, mas o facto de acabar de repente. Vamos ser todos apanhados de surpresa, sem tempo suficiente para desenvolvermos uma alternativa eficiente." Olhou em redor do quarto, afogueado, como se não tivesse ainda conseguido expressar tudo o que sentia. "Tu já reparaste bem no que nos espera?"
Tomás balançou a cabeça.
"Uma grande trapalhada."
"Nem imaginas a que ponto, Casanova" , observou Filipe com secura. "Vêm aí calores cada vez mais infernais, uma subida do nível do mar que levará as águas a engolirem ilhas e a invadirem continentes, vão aparecer tempestades crescentemente brutais, a desertificação irá alargar-se a metade do planeta e as colheitas mais produtivas serão destruídas pela seca. No mesmo instante em que isso acontece, o petróleo em grandes quantidades acaba de modo abrupto e apanha-nos de cuecas na mão, totalmente desprevenidos. A economia entra numa profunda recessão, as empresas fecham, aparece a fome, quebra-se a ordem pública e, quando deres por ela, a nossa civilização já desapareceu." Balançou o corpo para a frente, aproximando o rosto da face do amigo, e repetiu a pergunta. "Tu já viste o que vai acontecer?"
"O apocalipse."
"Sem tirar nem pôr", exclamou o geólogo. "O apocalipse. E isso não vai acontecer daqui a um século com os nossos bisnetos." Apontou o dedo para a carpete. "Isso vai acontecer muito em breve, ainda durante o nosso tempo de vida."
Deixou esta ideia assentar. "Nós vamos assistir a isso, Casanova. Nós vamos assistir a isso."
Tomás quase se encolheu na sua poltrona.
"É... é assustador."
Filipe endireitou-se na borda da cama.
"Quando nos conhecemos em Quioto, nós os quatro trocámos informações relativas a cada um dos nossos campos específicos de investigação e percebemos que a situação é de catástrofe iminente. O mundo não está preparado para esta crise, não existe nada pensado para a evitar. Foi por isso que desenvolvemos um plano."
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"Um plano? Que plano?"
"Como a minha área de especialidade é justamente o sector energético, e em especial o petrolífero, eu já dispunha de alguns sinais de que poderia haver problemas no futuro abastecimento mundial de petróleo. Eram coisas pequenas, pedaços de informação aparentemente irrelevantes, certos comentários em surdina que por vezes escutava nos mercados financeiros, esse tipo de coisas. Pegando nas pontas soltas deste puzzle, comecei a perceber que o fim do petróleo barato poderia estar para breve e isso, sendo um gravíssimo problema, era também uma oportunidade."
"Uma oportunidade para enfrentar o aquecimento global, queres tu dizer."
"Nem mais. Se o petróleo estiver para durar, podes ter a certeza de que os poderosos interesses que se movimentam em seu redor jamais permitirão a emergência de uma alternativa viável. Todos nós naquele grupo sabíamos isso. Mas, se porventura o petróleo estiver em fim de vida economicamente viável, então as coisas serão diferentes. O negócio irá acabar e esses interesses perdem força, por via do fim da sua fonte de rendimentos. Foi por isso que dividimos o trabalho entre nós os quatro em função das nossas qualificações e áreas de especialidade. O Howard ficou encarregado de acompanhar a evolução climática, de modo a poder prever com exactidão qual o momento mais crítico do aquecimento. Foi com esse objectivo em mente que conseguiu ser colocado numa estação americana na Antárctida, onde o aquecimento está a ser mais rápido do que no resto do planeta. O Blanco e o James, que eram afinal os físicos e engenheiros do grupo, ficaram com a responsabilidade de procurar e desenvolver uma fonte energética alternativa. E eu dispus-me a determinar a situação exacta das reservas de petróleo, de modo a estabelecer qual o momento politicamente mais propício para avançar com a energia alternativa que o Blanco e o James viessem eventualmente a desenvolver."
"Energia alternativa?"
"Sim", confirmou Filipe. "O mundo terá de dar um salto em frente e encontrar uma nova fonte energética. Se não o fizer, é o fim."
"Estás a falar em energia solar?"
"Não, a energia solar é um bom complemento, mas nunca passará disso. As noites e os dias nublados impedem que essa solução seja viável enquanto principal fonte energética."
"Mas qual é a alternativa? O Qarim disse-me em Viena que o vento também não servia."
"E disse muito bem. É que, tal como a energia solar, a eólica é intermitente. O
que se faz quando o vento pára?"