"Então o quê?"
"Boa pergunta", observou. "O nuclear seria uma opção, não se desse o caso 259
de ser caro e enfrentar grande resistência pública, com o problema adicional de os resíduos permanecerem radioactivos durante milhares de anos. Outras fontes, como as marés, poderão ser complementos interessantes, mas nunca a base na qual toda a economia poderá assentar. O gás e o carvão, que permanecem em grandes quantidades, são energias fósseis emissoras de carbono, pelo que terão de ser postos de parte, sobretudo o carvão, que ainda por cima é muito poluente." Todo o seu rosto se contraiu numa expressão interrogativa. "Então, o que fazer? Foi justamente em torno deste problema que o Blanco e o James se afadigaram." "E chegaram a alguma conclusão?"
"Eu e o Howard andávamos um pouco afastados do trabalho dos dois físicos, pelo que não conheço os pormenores. Apenas sei que o Blanco teve uma ideia interessante. Ele e o James estavam a trabalhar nessa ideia quando ocorreram os homicídios. O Blanco morreu, mas o essencial do trabalho teórico estava, ao que parece, completo. Na sequência dos assassínios, eu e o James desaparecemos de circulação, mas mantivemo-nos activos. Eu continuei a acompanhar a evolução das reservas mundiais de petróleo e ele, que é um homem muito prático, dedicou todo este tempo a desenvolver os conceitos teóricos delineados pelo Blanco." "Vocês os dois mantiveram-se em contacto?" "Claro", assentiu Filipe. "Através da Internet." O
amigo levantou-se da cama e abriu a mala, que se encontrava pousada sobre um estrado. Foi ao guarda-fato e começou a retirar roupa, que dobrou e guardou na mala. "E como são esses contactos? Frequentes?" "Não, de modo nenhum. Temos perfeita consciência dos recursos ao dispor dos interesses ligados ao petróleo e não queríamos correr riscos desnecessários. Ficou combinado que ele me enviaria uma mensagem codificada quando precisasse de se encontrar comigo."
"Qual mensagem? Aquela citação do Apocalipse?"
"Essa mesmo." Filipe parou de dobrar roupa sobre a mala e, endireitando-se, recitou de memória. "«Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no céu.»"
Voltou a inclinar-se sobre a mala e retomou a arrumação das coisas. "É por isso que estamos aqui."
"O teu amigo inglês sabe que eu também venho?"
"Claro."
"E qual vai ser o meu papel?"
"Tu estás a trabalhar para a Interpol, não estás? Então vais ajudar-nos, Casanova."
O historiador ergueu-se da poltrona, incapaz de permanecer sentado.
"Mas como? Como te poderei ajudar?"
Filipe ergueu os olhos.
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"Para darmos o próximo passo, vamos precisar de uma polícia de confiança."
XXXII
Um bafo abrasador acolheu-os no momento em que a porta do avião se abriu e desceram as escadas para a pista do Aeroporto Connellan; parecia que tinham mergulhado num forno ou cruzado a entrada de uma sufocante estufa seca, instalada a meio da planície semidesértica onde o aparelho tinha aterrado.
"Welcome to Yulara", acolheu-os uma hospedeira no último degrau, uma morena que exibia um sorriso profissional.
Bufando de calor, Tomás e Filipe calcorrearam o alcatrão a uma velocidade incerta; ora se apressavam para escapar da fornalha o mais depressa possível, ora abrandavam porque o corpo parecia derreter-se sob aquele calor abafado. Nuvens de minúsculos insectos esbarraram-lhes na cara, obrigando-os a sacudir o ar diante do nariz; e foi com alívio que entraram por fim no terminal, abraçando a frescura do ar condicionado com a alegria de quem inspira o ar depois de quase ter morrido afogado. O aeroporto era pequeno, quase só um aeródromo arejado, e, logo que o geólogo recuperou a sua mala, saíram para o átrio principal do terminal.
"Philip!", chamou uma voz.
Olharam ambos na direcção da voz e viram um sexagenário alto e magro, de cabelos grisalhos e barba branca pontiaguda, a pele muito ruborizada e olhos azuis gastos por trás de uns óculos muito graduados.
"Olá, James", saudou Filipe, abrindo-se num sorriso.
Os dois homens abraçaram-se e, quando se soltaram, o desconhecido encarou Tomás com uma expressão inquisitiva.
"É este o teu amigo?"
Filipe fez um gesto largo, como se os quisesse juntar.
"Sim, este é o Tomás. Está a trabalhar para a Interpol."
O anfitrião estendeu a mão ossuda.
"How do you do?", cumprimentou. "Nem imagina como... humpf... estou satisfeito por conhecê-lo."
"Tomás, apresento-te James Cummings, físico de Oxford exilado em Yulara."
Os dois apertaram as mãos, o inglês imensamente satisfeito pela presença de um elemento da Interpol junto dele, como se Tomás fosse a garantia do fim da insegurança que o apoquentava desde a morte dos outros membros do grupo.
Cummings espreitou para além dos recém-chegados, como se procurasse alguém que viesse atrás.
261
"E os outros?", perguntou.
"Quais outros?"
"Bem... humpf... não vieram mais polícias convosco?"
"James, o Tomás veio sozinho", atalhou Filipe, um toque de impaciência na voz. "Eu já te tinha explicado que ele vinha sozinho."
O inglês pareceu desapontado.
"Pois foi", reconheceu. "Mas eu tinha esperança... humpf... de que viesse mais segurança." Estudou Tomás dos pés à cabeça. "E a arma? Onde traz você a arma?"
"O Tomás não é polícia. É historiador."
"Historiador? Humpf... mas para que precisamos nós de um historiador?"
"Eu já te expliquei que ele é meu amigo e está a trabalhar para a Interpol."
Pousou-lhe a mão no ombro. "Confia em mim, vai correr tudo bem." Olhou para Tomás e falou em português. "Desculpa lá, Casanova. O James é um daqueles cientistas que parecem viver no mundo da lua. Uma espécie de Professor Pardal, estás a ver? Só que, no que diz respeito a trabalho, não há génio mais inventivo do que este, podes crer."
"Não te preocupes", retorquiu o historiador. "O meu pai também era assim."
Cummings conduziu-os para fora do terminal e levou-os sob o sol abrasador até ao parque de estacionamento.
"Está calor, hem?", comentou Tomás.
"Calor?", riu-se o inglês. "Você deve estar a brincar, old cbap. Eu queria vê-
lo aqui em Fevereiro. Aí é que você ia ver... humpf... o que era calor a sério."
O historiador avaliou o seu anfitrião. Era um homem muito alto, quase de um metro e noventa, de fisionomia seca, pernas e braços longos e magros; usava camisa e calções caqui, com a cabeça tapada por um chapéu australiano, ornado com uma pena verde e amarela de pássaro. Parecia desengonçado, um artolas armado em cowboy.
Chegaram ao pé de um Land Rover verde-azeitona, a cor escondida por uma densa camada de pó, e Cummings abriu as portas; os três acomodaram-se lá dentro, mas o calor era tal que os assentos escaldavam e o ar quase lhes queimava os pulmões. Sem perder tempo, o inglês ligou o motor e o poderoso ar condicionado australiano refrescou o interior do jipe em apenas três segundos; se Tomás não tivesse visto, jamais acreditaria.
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"Então, James?", disse Filipe, que se sentara no banco ao lado do condutor.
"Como te tens dado aqui na Austrália?"
"Humpf", expeliu o físico, no que parecia a Tomás ser uma peculiaridade de fala. O tique assemelhava-se a um soluço, mas um daqueles soluços afectados, aristocráticos, um trejeito que lhe nascia no estômago e explodia com pompa nos lábios. "Isto é um inferno, um verdadeiro inferno."