Entrou no carro e ligou-o. Acendeu os faróis, espreitou pelo retrovisor, esperou que um automóvel passasse e arrancou. Deixou para trás a estação de comboios, que observou de relance pelo espelho, e fixou a atenção no semáforo.
Foi a última coisa que a sua memória registou.
II
A primeira imagem apareceu-lhe desfocada. Viu um vulto branco passar diante de si; mas era uma visão difusa, vaga, quase etérea, uma mancha nebulosa, um borrão enevoado. Escutou um barulho tranquilo, palavras murmuradas, incompreensíveis porém. Sentiu-se confuso, entorpecido, ébrio; os olhos demoravam a focar as imagens, pareciam pesados, ronceiros, até desobedientes. A mente divagava, embrutecida, preguiçosa, incapaz de compreender, demasiado lenta para raciocinar.
Pensa, Tomás.
Fez um esforço para se concentrar. Abanou a cabeça, como se assim pudesse expulsar o demónio que o inebriava, e procurou entender o que se passava. Pensa, Tomás, repetiu para si mesmo. Arregalou os olhos, tentando desse modo libertar-se da neblina que lhe toldava a visão, e fez por apreender o mundo ali e naquele momento; sabia que para compreender precisava de ver, mas ver era-lhe difícil. Tão difícil... Fez um esforço para captar o que se passava, para registar as imagens, para vencer o atordoamento, para atravessar a névoa embaciante.
Prendeu a atenção no vulto branco e os olhos focaram-no gradualmente. Era uma mulher, começou por perceber. Tinha uma coisa na cabeça; seria um lenço?
Não, era uma touca, uma touca branca. A mulher vestia de branco, parecia uma freira. Claro que não era uma freira, concluiu devagar, a mente ainda empastelada, 27
demorava a aguçar os reflexos. Não era uma freira. Era uma enfermeira.
"Então o nosso paciente já está a acordar?", perguntou a enfermeira, inclinando-se sobre ele com um sorriso.
Tinha os olhos castanhos e sardas no nariz, fazia-lhe vagamente lembrar a ex-mulher.
"Hmm", ouviu-se a murmurar.
"Dormiu bem?"
"Hmm?"
"Pronto, descanse", disse a enfermeira com infinita doçura. "Volto daqui a um bocadinho."
O rosto sardento saiu-lhe da frente e Tomás olhou em redor, numa modorra despreocupada. Apercebeu-se com esforço de que se encontrava num pequeno quarto de aspecto asséptico. Havia uma maquineta do lado direito, um móvel com um televisor em frente e uma janela à esquerda a dar para uns plátanos frondosos, os ramos iluminados pela luz do dia. Era manhã, verificou, e encontrava-se num sítio inesperado. Um hospital. A ideia assentou devagar na sua mente e surpreendeu-o.
Mas o que raio estou eu a fazer num hospital?, interrogou-se.
Sentiu o cansaço invadir-lhe o corpo e pesar-lhe nos olhos; a absurda embriaguez acossava-o irresistivelmente. Recostou-se na cama, aconchegou-se no quentinho, ajeitou as costas, respirou fundo e deixou-se ir no embalo mole do sono.
Uma voz masculina fê-lo despertar de novo. Abriu os olhos e viu um homem de bata branca e bigode fino ao lado da cama, a enfermeira sardenta atrás dele.
"Então muito bom dia, professor Noronha. Como se sente?"
Tomás olhou-o interrogativamente.
"Onde estou eu?"
"Na Clínica do Choupalinho. Como se sente?"
O paciente percebeu que recuperava gradualmente as suas faculdades, incluindo a capacidade de raciocinar com clareza. Arregalou os olhos, lembrando-se.
A frequência! Então e a frequência? Os alunos estão na faculdade à minha espera para a frequência! Ergueu a mão esquerda e consultou o relógio. Eram nove da manhã, ainda ia a tempo. A frequência estava marcada para daí a uma hora.
"Oiça, eu preciso de sair daqui", disse, as palavras ainda algo entarameladas.
"Tenho uma frequência às dez e não posso faltar."
"Ah, sim? E onde é essa frequência?"
"Na faculdade."
"Qual faculdade? A de Coimbra?"
28
"Não, a minha faculdade em Lisboa."
"Mas você está em Coimbra, homem", riu-se o médico. "Mesmo que saísse daqui agora a correr, não chegava a tem-po."
Tomás fez um esforço para recuperar as suas últimas memórias.
"Ainda estou em Coimbra?"
"Sim, senhor. Na Clínica do Choupalinho."
Deix<ou cair a cabeça na almofada, frustrado.
"Porta! Vou faltar à frequência!"
"Receio bem que sim", concordou o médico. "Como se sente?"
Tomás ponderou a pergunta.
"Um pouco esquisito", observou, descobrindo um gosto empastado na boca.
"Dói-me ligeiramente a cabeça."
"Pois deve doer, deve."
"O que aconteceu?"
"Não se lembra de nada?"
Tomás voltou a esgravatar nos arquivos mais recentes da sua meinte.
"Lennbro-me de ter entrado no carro à noite para ir para Lisboa."
"Mais nada?"
Reflectiu um instante.
"Benn... acho que é só isso."
"Qu;al a última imagem que guarda na memória?"
"Foi... foi a estação." Ergueu o sobrolho. "Não, foi o semáfoiro. Ia a virar para a ponte e parei no semáforo."
"Nã<o se lembra de mais nada?"
"Nã<o", disse Tomás.
Abamou a cabeça, para reforçar a negativa, mas logo teve de parair, o cérebro parecia-lhe chocalhar.
"De certeza?", insistiu o médico.
"Siim", confirmou o paciente, impaciente. "O que aconteceu?"
O mtédico pegou num bloco de folhas A4, como se consultasse uimas notas.
"O senhor teve um acidente. Atravessou a ponte e ia aqui a passair pela Praça 29
da Canção, presumo que a caminho da auto-esitrada para Lisboa, quando o carro embateu num poste e você perdeu os sentidos."
"Eu embati num poste?"
"Sim." Voltou a consultar as anotações. "Aí pelas dez da noite."
"Aqui na Praça da Canção?"
"Sim."
Tomás fez um ar intrigado.
"Tem piada, não me lembro de nada disso. Só me lembro de arrancar o carro e parar no semáforo à espera do verde."
O médico sorriu.
"É natural. Quando se sofre um traumatismo na cabeça e se perdem os sentidos, é normal as pessoas apagarem a memória dos cinco minutos anteriores ao acidente. Há até quem perca a memória das horas anteriores, veja lá."
"A sério?"
"É muito comum, fique descansado."
Foi a vez de Tomás sorrir.
"Caramba, não me lembro mesmo de nada. E como se não tivesse acontecido.
Num momento estou parado no semáforo, no momento seguinte estou a olhar para a sua enfermeira. É como se não se tivesse passado nada entretanto. Saltei auto-maticamente de um lado para outro, percebe?"
"É estranho, é", assentiu o médico. "Mas muito comum."
Tomás apalpou a cabeça. Sentiu umas ligaduras agarradas ao cabelo e alarmou-se.
"O que tenho eu? Isto é grave?"
"Não, não é nada de especial, fique tranquilo." O médico aproximou-se e tocou-lhe ao de leve na nuca. "Você deve ter dado um jeito estranho à cabeça quando embateu no poste porque o traumatismo foi aqui atrás, na nuca." Pegou-lhe no braço direito e exibiu um penso sobre as costas da mão. "E magoou-se ligeiramente aqui na mão, está a ver? Nada de grave, mas não deve fazer esforços, entendeu?"
"Sim."
"Se tiver comichão nas costas da mão, não coce. Isto é muito importante. Não coce. É sinal de que a ferida está a cicatrizar."
"Muito bem, não vou coçar", prometeu Tomás, inspeccionando o penso na 30
mão direita. Levantou a cabeça para o médico e leu-lhe o nome na plaquinha pregada ao peito. "O senhor é o doutor Cariano?"
O médico sorriu.