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O amigo certificou-se uma derradeira vez de que Igor olhava para o outro lado e atirou-se para lá da pedra, arrastando-se e gatinhando por entre moitas e pedregulhos. Cummings seguiu-o de imediato, com uma agilidade surpreendente para a idade, e Tomás, vencendo uma derradeira hesitação, atirou-se no seu encalço.

"Stop!", gritou alguém atrás.

Era a voz de Igor.

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Num impulso, movendo-se o mais depressa possível, tentando fundir-se com o ar, Tomás saltou para uma sombra, era um pequeno declive, rebolou pelo chão, bateu com a mão no ângulo de uma pedra, sentiu dor mas ignorou-a, projectou-se para a frente e procurou protecção por entre as rochas.

Crack.

O estampido explodiu-lhe junto dos ouvidos com violência, tão perto a arma tinha sido disparada.

Crack-crack.

Era Igor que abria fogo sobre os fugitivos. Com horror, o pânico a tomar-lhe conta do corpo, Tomás percebeu que o brutamontes russo lhes dava caça. Se não os capturasse, matá-los-ia. Ou se calhar já nem os queria sequer capturar, apenas procurava mesmo abatê-los.

Sentiu ganas de se levantar e correr como um desalmado desfiladeiro fora; o corpo implorava-lhe que o fizesse, correria como o vento, mas uma réstia de lucidez dominou o impulso primário, uma voz na mente avisou-o de que, se se erguesse naquele instante, tombaria logo a seguir, e para sempre. Confiou nessa voz como um cego confia no cão que o guia e manteve-se baixo, rolando nos declives, trepando pelas cristas, rastejando pela terra vermelha e empoeirada como uma cobra que serpenteia colada ao chão. Parou um instante para se orientar, tentando localizar os outros fugitivos, mas Filipe e Cummings haviam desaparecido, no desespero da fuga cada um seguira o seu caminho, um para um lado e outro para outro.

Crack.

A bala sibilou perto do ouvido de Tomás e o som teve o efeito de um choque eléctrico. Os movimentos do historiador redobraram de energia e o corpo rolou pelo chão, buscando a protecção do solo. Sentiu que embatia numa das paredes que comprimiam o desfiladeiro e gatinhou por entre as moitas, os ramos a arranharem-lhe a pele, até que sentiu uma fenda na rocha e se enfiou lá.

Era uma abertura estreita e escura. Com o coração a rufar-lhe no peito como um batuque, olhou em volta e esforçou-se por absorver a topografia do terreno que o cercava. Sabia que a sua segurança era momentânea, que Igor vinha no seu encalço, que dispunha de apenas alguns segundos para escapar daquela ratoeira. A fenda rachava a pedra pelo interior e Tomás experimentou um terrível sentimento de indecisão. Poderia saltar de novo para o desfiladeiro e gatinhar ao longo da parede, mas provavelmente seria visto por Igor e tê-lo-ia à perna. Era um risco. Poderia subir pela fenda e ver aonde ela o levaria, mas era provável que isso viesse a revelar-se um beco sem saída, deixando-o sem escapatória quando Igor chegasse ao buraco.

Era outro risco.

O que fazer?

O tiroteio prosseguia no desfiladeiro, intenso e caótico, até que, por entre as 297

detonações que ecoavam por Walpa Gorge, se apercebeu de que alguém se aproximava. Era Igor que ali vinha. Ao verificar que o regresso ao desfiladeiro se tornara uma absoluta impossibilidade, Tomás mergulhou nas profundezas da abertura e trepou em direcção à luz; apoiando um pé numa saliência, agarrando a terra com uma mão, fazendo de uma rocha um degrau, escorregava e recomeçava, irrequieto, tentando controlar o pânico, esforçando-se por escalar a todo o custo, com a determinação dos desesperados.

Alcançou um parapeito e sentou-se para repousar um momento. Pingava gotas de transpiração em abundância; na verdade nem eram gotas, mas um fio de água que lhe escorria pela ponta do nariz e pelo queixo, nunca pensou que fosse possível suar tão intensamente. Sentiu uma sede incrível e a boca muito seca; passou a língua pelos lábios, mas era como se ela fosse de cortiça, nem uma gota de saliva conseguiu extrair. Encolheu os ombros, resignado. Sabia que naquele momento crítico a água constituía a última das prioridades.

Ouviu movimento em baixo e viu um vulto; era Igor que se aproximava com a espingarda automática nas mãos. Os olhos de ambos cruzaram-se num instante de reconhecimento, mas foi mesmo um efémero momento porque depressa o russo rodou a arma e voltou o cano para cima, na sua direcção.

Crack.

Tomás rolou para o lado, no parapeito, e escapou a tempo à bala assassina. O

parapeito tinha uns dois metros, o que lhe dava espaço de recuo, mas o cerco apertava e tornava-se claro que Igor nem precisava de subir; bastava-lhe escalar até à borda e apontar a arma, coisa de alguns segundos.

O fugitivo explorou apressadamente o parapeito, andando para cá e para lá, como um leão enjaulado, sempre em busca de uma saída daquela armadilha. Não havia nada, estava encurralado. Sentiu a respiração ofegante de Igor no esforço da escalada e viu o cano da arma subir acima da linha da borda do parapeito; parecia um periscópio a emergir das águas do mar.

Num arremesso de desespero, Tomás deu um salto até à borda, espreitou para baixo e viu a cabeça de Igor a meio metro de distância. O russo arfava agarrado às saliências para subir ao parapeito. Sem hesitar, o fugitivo ergueu a perna e, nesse instante, passando de presa a predador, desferiu uma brutal pisadela na nuca do russo. Apanhado de surpresa, Igor bateu com a testa na parede, desequilibrou-se e caiu com estrondo no chão da fenda.

O contra-ataque deu algum tempo adicional a Tomás, que recuou até à parede do parapeito e reavaliou a situação. Do local onde se encontrava não conseguiria subir mais. Haveria algum caminho alternativo que, na loucura da fuga, lhe tivesse escapado? Estudou melhor a fenda e viu que, se desse um salto sobre o parapeito, passando por cima do local de onde viera e onde agora se encontrava o seu 298

perseguidor, poderia atingir uma pequena plataforma com um trilho aberto na rocha.

Mas era arriscado, uma vez que teria de se expor por instantes à mira de Igor; além disso, se o salto falhasse, arris-cava-se a cair na fenda onde o russo o aguardava.

Enquanto avaliava os prós e os contras, ouviu o som da respiração de Igor e percebeu que este tentava de novo alcançar o parapeito. Foi nesse instante que tomou a decisão. Antes que o seu perseguidor subisse de mais, Tomás aproximou-se da borda e espreitou para baixo. A primeira coisa que viu foi o cano da arma apontado na sua direcção.

Crack.

A bala roçou-lhe a cabeça e o estrondo ficou a zunir-lhe nos ouvidos, deixando-o momentaneamente atordoado.

Cabrão, pensou. Já estava à espera que eu espreitasse.

A táctica do pontapé, percebeu, já não voltaria a surpreender o seu inimigo, que agora escalava a fenda com cautelas redobradas. O tempo urgia e por isso Tomás tomou balanço, encheu os pulmões como quem se enche de coragem, correu para a borda e saltou.

Aterrou com um gemido na plataforma para onde tinha apontado o corpo.

Sentiu que se desequilibrava, girou os braços no ar em busca de estabilidade e agarrou-se por fim a uma saliência, evitando a queda na fenda. Ouviu lá atrás os movimentos de Igor a apressar a sua escalada e percebeu que em breve o russo o alcançaria. Levantou-se e percorreu o

trilho rasgado na pedra. Alguns metros adiante, o trilho parecia desaparecer na sombra, engolido por um buraco com o tamanho de um cão. A sensação de que estava encurralado regressou em força, uma vez que não podia voltar para trás.