Sua amabilidade era um pouco irônica. Retrato de estúdio! Cama no estúdio era o mais provável.
— Obrigado, — disse Bond.
O preto retirou-se. Bond dirigiu-se para a moça.
— Trabalhando por conta própria... — repetiu devagar. — Isso ainda não me revela quem quer o meu retrato. — Sua fisionomia tornou-se dura. — Diga, agora!
— Não! — retrucou a chinesinha com obstinação.
— Como queira! Vamos, Quarrel, prossiga!
Bond recostou-se na cadeira. Dizia-lhe o instinto que esta era a pergunta crucial deste programa de "Tudo ou Nada". Se conseguisse obter a resposta, ser-lhe-iam poupadas semanas de andanças.
O ombro direito de Quarrel começou a abaixar-se. A jovem procurava chegar-se a ele, a fim de aliviar a pressão, mas ele, com a mão livre, mantinha-lhe o corpo afastado. O rosto da chinesa esticava-se para Quarrel. Cuspiu-lhe nos olhos. Quarrel sorriu e aumentou a torção. A chinesinha dava pontapés furiosos por baixo da mesa. Sibilava palavras em chinês. O suor começou a gotejar-lhe na testa.
— Diga o que eu quero saber — disse Bond com doçura — e tudo isto estará acabado, e nós seremos amigos e tomaremos um drinque juntos.
Ele estava ficando aborrecido. O braço da jovem devia estar prestes a partir-se.
"Seu...! — De repente, a mão esquerda da moça alcançou o rosto de Quarrel. Bond não chegou a tempo para impedi-lo. Qualquer coisa brilhou, e deu-se uma explosão seca. Bond agarrou-lhe o braço e puxou-o para trás. Escorria sangue pela face de Quarrel. Tiniram na mesa estilhaços de vidro e de metal. Ela esmagara a lâmpada do "flash" no rosto de Quarrel. Se tivesse acertado nos olhos, ele estaria cego.
Quarrel ergueu a mão livre e apalpou o rosto. Colocou-a diante dos olhos e viu o sangue. — Ah! — não havia senão admiração e prazer felino em sua voz. E disse calmamente e Bond:
— Não vamos tirar nada dessa pequena, chefe. Ela é rija. Quer que eu lhe quebre o braço?
— Deus me livre! — Bond largou o braço que estava segurando. — Deixe-a.
Ele se sentia descontente consigo mesmo por ter machucado a moça e, ainda assim, nada ter conseguido. Mas aprendera algo. Quem quer que estivesse por trás dela segurava seus agentes com guante de ferro.
Quarrel trouxe para a frente o braço que mantivera nas costas dela. Ainda lhe segurava o pulso. Abriu-lhe a mão, e fitou-a nos olhos. Os dele eram cruéis. — Você me marcou, menina. Agora, eu vou marcá-la. — Levantou a outra mão e apertou, entre o polegar e o indicador, o Monte de Vênus, o macio losango de carne que se estendia na palma da mãozinha frágil, abaixo do polegar. Começou a espremê-lo. Bond podia ver as juntas da mão de Quarrel ficarem brancas com o esforço. A jovem soltou um grito agudo. Martelou com o punho a mão de Quarrel e depois o rosto. Quarrel sorriu e apertou com mais força ainda. De repente, largou-a. A moça pôs-se em pé e afastou-se da mesa, com a mão machucada encostada à boca. Abaixou a mão e vociferou enfurecida: — Ele há-de pegá-los, seus bastardos! — e, com a "Leica" a balançar-se na correia, desapareceu correndo por entre as palmeiras.
Quarrel riu secamente. Esfregou um guardanapo no rosto, atirou-o no chão e pegou outro. Disse a Bond:
— O Monte de Vênus dela há-de estar doído muito tempo ainda depois de ter sarado esse talho que ela me fez! É um pedaço interessante, na mulher, esse Monte de Vênus. Quando é bem cheio, como o daquela pequena, pode-se apostar que ela é boa na cama. O senhor sabia disso?
— Não, — respondeu Bond, — é novidade para mim.
— Pois é coisa certa. Esse pedaço da mão é o melhor indício. Não se preocupe com ela, — acrescentou Quarrel, notando a expressão de Bond. — Ela só vai ter uma equimose na mão. Mas que Monte de Vênus bem gordo! Vou dar em cima dessa pequena, qualquer dia, para verificar se minha teoria dá certo!
Muito a propósito, a orquestra começou a tocar "Não toque no meu tomate".
— Quarrel, — disse Bond, — é tempo de você casar e sossegar. E deixe essa pequena em paz, senão você acaba com uma faca entre duas costelas. Agora, vamos pedir a conta e sair daqui. São três da madrugada em Londres, onde eu estava ainda ontem. Preciso de uma noite bem dormida. Você tem que iniciar meu treino. Creio que vou precisar disso. E é tempo também que você faça um curativo no rosto. Ela escreveu nele o nome e endereço.
Quarrel grunhiu com expressão de saudade. Disse, com calma satisfação:
— Que pequena rija! , Pegou um garfo e fê-lo tinir contra um copo.
V - FATOS E NÚMEROS
"Ele há de pegá-los... Ele há de pegá-los... Ele há de pegá-los, seus bastardos!"
Essas palavras tiniam ainda no cérebro de Bond, no dia seguinte, enquanto estava sentado no alpendre, comendo um delicioso desjejum e olhando, além dos luxuriantes jardins tropicais, para Kingston, a oito quilômetros de distância.
Estava convencido, agora, de que Strangways e a moça tinham sido mortos. Alguém tivera necessidade de não permitir que eles se metessem em seus negócios, de sorte que os matara e destruíra os arquivos atinentes àquilo que eles estavam a investigar. Essa mesma pessoa sabia, ou supunha, que o Serviço Secreto procuraria esclarecer o mistério do desaparecimento de Strangways. Soubera, fosse como fosse, que Bond tinha sido encarregado dessa tarefa. Quisera ter em mãos uma fotografia de Bond e saber onde ele estava hospedado. Deveria estar mantendo Bond sob vigilância, a fim de saber se ele tinha alguma pista que revelasse a morte de Strangways. Se Bond o conseguisse, ele também teria que ser eliminado. Haveria um encontro de carros, ou uma briga de rua, ou qualquer outra morte que não despertaria suspeitas. E — perguntava Bond a si mesmo — qual teria sido a reação daquela pessoa, ao saber do tratamento que ele e Quarrel tinham dispensado à moça Ching? Se era tão implacável quanto o supunha' Bond, aquilo seria o bastante. Talvez Strangways tivesse mandado um relatório preliminar a Londres, antes de sua morte. Talvez alguém tivesse cometido uma indiscrição. O inimigo seria louco em se arriscar. Se tivesse um pouco de bom senso, depois do incidente com a pequena Chung, ele procuraria sem delongas tomar conta de Bond e, talvez, também de Quarrel.
Bond acendeu o primeiro cigarro do dia — o primeiro "Royal Blend" que estava fumando depois de muitos anos ;— e deixou que a fumaça escapasse por entre os dentes com um assobio de satisfação. Esta era sua "apreciação do inimigo". Mas quem seria esse inimigo?
Ora, havia um só candidato, mas bastante importante, o Doutor No, Doutor Julius No, o sino-alemão que tinha adquirido Crab Key e tirava a sua fortuna do guano. Nada existia contra esse indivíduo nos arquivos da polícia, e um pedido de informações feito ao FBI dos Estados Unidos tinha-se revelado negativo. O caso das espátulas rosadas e as complicações com a Sociedade Audubon não tinham nenhuma significação precisa, salvo, como o dissera M, que um bando de gente que não tinha o que fazer ficara nervosa por causa de umas poucas cegonhas vermelhas. Contudo, quatro pessoas tinham morrido por causa daquelas cegonhas, e, o que era muito significativo para Bond, Quarrel tinha medo do Doutor No e de sua ilha. Isso era, realmente, muito estranho. Os pescadores das ilhas Cayman, e especialmente Quarrel, não se assustavam com facilidade. E por que tinha o Doutor No aquela mania de isolamento? Por que gastava ele tanto, e se dava a tanto trabalho, a fim de manter todos afastados de sua ilha de guano? Guano — excrementos de aves marinhas. Quem havia de querer esse material? Qual era o seu valor? Bond devia fazer uma visita ao Governador às dez horas. Satisfeitas as exigências do protocolo, ele procuraria o secretário para a Colônia e procuraria descobrir tudo sobre o guano e Crab Key, e, se fosse possível, sobre o Doutor No. Ouviu duas pancadas à porta. Bond levantou-se e abriu. Era Quarrel, com a face esquerda decorada com uma cruz de esparadrapo que bem poderia ter enfeitado o rosto de algum pirata.