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— Chefe, acho que o senhor está doido varrido se pensa em entrar escondido naquela ilha.

Quarrel tinha reunido toda a sua coragem para dizer isso. Fez uma pausa. Não houve resposta. Ele olhou de soslaio para o perfil sereno de Bond. Disse mais calmamente, numa voz que traía seu embaraço:

— Eu só queria uma coisa, chefe. Tenho família nas ilhas Cayman. O senhor poderia arranjar um seguro de vida para mim, antes de embarcarmos?

Bond olhou com afeição para o viril rosto moreno. Uma funda ruga de preocupação marcava-lhe a testa, entre os olhos.

— Naturalmente, Quarrel. Tomarei todas as providências em Porto Maria, amanhã. Vamos fazê-lo grande, cinco mil libras, digamos. Agora, como faremos a travessia? De canoa?

— É o melhor, capitão. — A voz de Quarrel denunciava-lhe a relutância. — Precisaremos de mar calmo e pouco vento. Passaremos pelos estreitos de nordeste. Terá que ser em noite escura. Estão começando agora. Pelo fim da semana, entraremos no segundo quarto da lua. Onde o senhor pretende desembarcar, chefe?

— Na costa sul, perto da foz do rio. Dali, seguiremos rio acima até o lago. Estou certo de que era ali que ficava o acampamento dos guardas. Podiam assim ter água doce e descer até o mar, para pescar.

Quarrel grunhiu sem entusiasmo.

— Quanto tempo vamos ficar, chefe? Não podemos levar muitos mantimentos. Pão, queijo, carne de porco salgada. Fumo, não. Seria muito arriscado, por causa do fogo e da fumaça. É um lugar difícil, chefe. Pântanos e mangues.

— É melhor fazermos os cálculos para três dias — respondeu Bond. — O tempo pode mudar e nos obrigar a ficar mais uma noite ou duas. Levaremos dois bons facões. Eu levarei um revólver. Nunca se sabe o que está por acontecer.

— É verdade, chefe — aprovou Quarrel com ênfase. Caiu numa cisma silenciosa que durou até a chegada a Porto Maria.

Atravessaram a cidadezinha e contornaram o promontório, até o Porto Morgan. Tudo estava como se lembrava Bond — o pão-de-açúcar ao lado dos montículos de conchas vazias, o barulho distante da arrebentação nos recifes que por pouco lhe tinham servido de sepultura. Com a mente cheia de recordações, Bond guiou o carro pela pequena estrada lateral e através dos canaviais, no meio dos quais se erguiam as ruínas majestosas da Casa Grande da plantação de Beau Desert, semelhante a um galeão encalhado.

Chegaram ao portão do bangalô. Quarrel desceu do carro e abriu o portão. Bond passou por ele e estacionou no pátio, atrás da casa branca, de um só andar. Estava tudo muito sossegado. Bond contornou a casa e atravessou o gramado, até a praia. Sim, lá estava ele, aquele trecho de água profunda e silenciosa, o caminho submarino que ele tomara para alcançar a Ilha da Surpresa. Voltava-lhe por vezes à lembrança, em pesadelos. Bond ficou a contemplá-lo, pensando em Solitaire, a moça que ele salvara do mar, machucada e ensangüentada. Carregara-a através do quintal, até a casa. Onde estaria ela? Abruptamente, Bond fez meia-volta e entrou na casa, afugentando os fantasmas.

Eram oito e meia. Bond tirou suas poucas roupas da maleta e pôs-se de “short” e sandálias. Espalhou-se logo o aroma delicioso do café e do toicinho frito. Comeram o desjejum, enquanto Bond determinava a rotina de seu treino: levantar às sete, nadar quatrocentos metros, desjejum, uma hora de banho de sol, correr um quilômetro e meio, nadar outra vez, almoçar, fazer a sesta, banho de sol, nadar um quilômetro e meio, banho quente e massagem, jantar, deitar às nove.

Depois do café, iniciaram o programa.

Nada veio quebrar a monotonia da semana, salvo uma notícia breve no “Daily Gleaner” e um telegrama de Pleydell-Smith. O “Gleaner” dizia que um “Sunbeam Talbot”, de placa H. 2473, tinha sido envolvido num desastre fatal na Estrada do Diabo, um trecho cheio de curvas entre Spanish Town e Ocho Rios, na estrada de Kingston a Montego. Um caminhão desgovernado, cujo condutor estava sendo procurado, tinha colidido com o “Sunbeam” numa curva. Ambos os veículos tinham saído da estrada e rolado pelo barranco. Tinham morrido os dois ocupantes do “Sunbeam”, Ben Gibbons, de Harbour Street, e Josiah Smith, de endereço ignorado. Pedia-se a um turista inglês, sr. Bond, a quem o carro tinha sido emprestado, que comparecesse ao posto policial mais próximo.

Bond queimou esse exemplar do “Gleaner”. Não queria perturbar Quarrel.

No penúltimo dia, chegou o telegrama de Pleydell-Smith:

CADA OBJETO CONTINHA CIANETO BASTANTE PARA MATAR UM CAVALO PONTO SUGIRO MUDANÇA DE FORNECEDOR PONTO FELICIDADES SMITH.

Bond queimou também o telegrama.

Quarrel alugou uma canoa e passaram três dias a velejar. Era uma casca desajeitada, cavada num só tronco gigantesco. Tinha dois bancos estreitos, dois remos pesados e uma pequena vela de pano sujo. Era um instrumento rudimentar. Quarrel estava satisfeito com ela.

— Sete, oito horas, chefe — dizia ele. — Depois, arriamos a vela e usamos os remos. Fica um alvo menor para o radar.

O tempo manteve-se firme. A previsão da rádio de Kingston fora acertada. As noites estavam negras como breu. Os dois homens se aprontaram. Bond vestiu calças de praia de pano preto, barato, uma camisa azul-marinho e calçou alparcatas.

Chegou a última tarde. Bond estava satisfeito por entrar em ação. Só uma vez se ausentara do campo de treino: para comprar provisões e fazer o seguro de vida de Quarrel. Estava ansioso por sair da inatividade e dar início ao desempenho de sua missão. Confessava a si mesmo que essa aventura o estimulava. Tinha os ingredientes que apreciava: atividade física, mistério e um inimigo implacável. Tinha também um bom companheiro. Sua causa era justa. Poderia também ter a satisfação de atirar no nariz de M as “férias em país de sol”. Aquilo lhe doía ainda. Bond não gostava de ser mimado.

O sol desceu, refulgente, para o seu túmulo marinho.

Bond foi para o quarto e apanhou os dois revólveres. Examinou-os. Nenhum era um pedaço dele, como o fora a “Beretta” — uma extensão de sua mão direita — mas ele já sabia que eram armas melhores. Qual deles levaria? Bond os sopesou cada um por sua vez. Teria de ser o “Smith & Wesson”, mais pesado. Não haveria tiro a queima-roupa, se houvesse tiroteio em Crab Key. Seria tiroteio pesado, a grande distância, se acontecesse algo. O revólver brutal, curto, alcançava oito metros mais que a “Walther”. Bond ajustou o calibre no cinto das calças e prendeu nele o revólver. Colocou vinte e cinco cartuchos no bolso. Seria excesso de precaução, levar todo aquele metal para uma excursão que bem poderia ser apenas um piquenique nos trópicos?

Bond foi até a geladeira e tirou uma garrafa de uísque canadense, um pouco de gelo e soda, e foi sentar-se no jardim, esperando que os últimos raios de luz se apagassem.

As sombras foram surgindo por detrás da casa e avançaram para o gramado, encobrindo-o completamente. O vento que sopra à noite, vindo do centro da ilha, rumorejava entre as folhas das palmeiras. Os sapos começaram a coaxar no meio das moitas. Os vagalumes, os “pisca-piscas”, como os chamava Quarrel, saíram de seus abrigos e puseram-se a emitir seus sinais de telegrafa sexual. Durante um momento, a melancolia do anoitecer tropical apertou o coração de Bond. Pegou a garrafa e examinou-a. Já bebera a quarta parte. Verteu mais uma boa dose no copo e acrescentou um pouco de gelo. Por que estaria ele bebendo? Por causa das trinta milhas de mar escuro que teria de atravessar essa noite? Por que estava partindo para o desconhecido? Por causa do Doutor No?

Quarrel veio da praia.

— Está na hora, chefe.

Bond engoliu a bebida e seguiu o pescador das ilhas Cayman até a canoa. Ela estava balançando devagar, na água, com a proa descansando na areia. Quarrel foi à popa e Bond subiu no espaço compreendido entre o banco da frente e a proa. A vela, enrolada à volta do mastro baixo, ficava-lhe às costas. Bond pegou do remo e pôs-se a remar, e eles foram virando devagar e dirigindo-se para a brecha nas ondas levemente espumantes que indicava a passagem através dos recifes. Remavam sem esforço, em harmonia, fazendo virar os remos entre as mãos de modo a não tirá-los da água na remada para frente. As pequenas ondas batiam devagar de encontro à proa. Era o único ruído que faziam. Estava escuro. Ninguém os vira sair. Tinham simplesmente deixado a terra e partido para o mar.