A única tarefa de Bond consistia em remar. Quarrel dirigia. Na brecha através da arrebentação havia turbilhões e sucções de correntes contrárias e eles foram jogados em meio aos ásperos rochedos e às árvores de coral, aguçadas como dentes caninos pelo embate das ondas. Bond podia sentir a força das grandes remadas de Quarrel, quando a pesada embarcação jogava e mergulhava entre duas cristas. Mais de uma vez, o remo de Bond bateu contra uma rocha e houve uma ocasião em que ele teve que se segurar, quando a canoa chocou contra um banco de coral escondido e tornou a deslizar. Passaram, finalmente, e muito abaixo do barco viam-se manchas azul-escuras de areia; à volta deles era a sensação pesada, das águas oleosas e profundas.
— Tudo em ordem, chefe — disse Quarrel em voz baixa. Bond descansou o remo e sentou-se no fundo da embarcação, com as costas apoiadas no banco. Ouviu as unhas de Quarrel arranhando o pano ao desenrolar a vela, e, em seguida, o ruído seco do pano esticado pela brisa. A canoa endireitou-se e começou a deslizar mais rapidamente. Balançava-se ligeiramente. Havia um suave assobio por baixo da proa. Um punhado de espuma foi atirado ao rosto de Bond. O vento estava fresco e ficaria logo frio. Bond encolheu as pernas e colocou os braços à volta dos joelhos. A madeira já estava começando a machucar-lhe as nádegas e as costas. Perpassou-lhe pela mente o pensamento de que aquela noite iria ser um inferno de desconforto sem fim.
Na escuridão, Bond mal podia ver o círculo do horizonte. Depois, estendeu-se acima de sua cabeça uma camada de negra cerração da qual começaram a aparecer as estrelas, escassas a princípio, e depois se multiplicando e se confundindo num imenso tapete de luz. A Via Láctea brilhava no céu. Quantas estrelas?
Bond tentou contar as que caberiam ao longo do comprimento de um dedo, e logo tinham passado de cem. As estrelas transformavam o mar numa estrada cinza, fracamente iluminada, e depois se inclinavam por cima do topo do mastro, em direção à silhueta preta de Jamaica. Bond olhou para trás. Por detrás do vulto encolhido de Quarrel havia um distante enxame de luzes que devia ser Porto Maria. Já estavam a cerca de duas milhas. Logo teriam percorrido a décima parte da distância que tinham de atravessar, depois a quarta parte, depois a metade, Isso se daria por volta da meia noite, quando Bond substituiria Quarrel. Bond suspirou, descansou a cabeça nos joelhos e fechou os olhos.
Devia ter dormido, porque foi acordado pela batida de um remo contra o barco. Ergueu o braço para mostrar que tinha ouvido e olhou para o disco luminoso do relógio. Meia-noite e quinze. Enrijecido, estendeu as pernas, voltou-se e passou, com pouca segurança ainda, por cima do banco.
— Sinto muito, Quarrel — disse, e pareceu-lhe estranho ouvir sua voz. — Você me deveria ter sacudido antes.
— Não faz mal, chefe — respondeu Quarrel com um brilho acinzentado de dentes. — Faz-lhe bem dormir.
Passaram cautelosamente um pelo outro e Bond acomodou-se na popa e pegou o remo. A vela estava presa a um prego recurvado, ao lado dele. Estava batendo. Bond orientou a proa na direção do vento e de tal maneira que a Estrela Polar estava diretamente acima da cabeça inclinada de Quarrel, na proa. Durante algum tempo, isso ia ser engraçado. Teria algo que fazer.
A noite não se modificou, apenas pareceu mais escura e mais vazia. Pareceu mais lenta a pulsação do mar adormecido. O pesado marulho era mais demorado, e as ondas, mais profundas. Estavam navegando agora através de uma mancha fosforescente, que piscava para as estrelas e deixava cair jóias no mar cada vez que Bond levantava o remo. Como era seguro deslizar noite a dentro naquele barquinho tão ridiculamente vulnerável! Como o mar podia ser macio e doce! Um bando de peixes-voadores rompeu a superfície das águas perto da proa, e dispersou-se como estilhaços de granada. Alguns continuaram ao lado da canoa, voando cerca de sete metros antes de mergulhar entre duas muralhas de água. Estaria algum peixe maior a persegui-los, ou pensavam que a canoa fosse um peixe, ou estariam apenas brincando? Bond pôs-se a pensar em tudo quanto acontecia a centenas de braças abaixo do barco, nos grandes peixes, tubarões, barracudas, tarpões em seus cruzeiros tranqüilos, nos cardumes de peixes-lua, de cavalas, de atuns, e muito abaixo, no crepúsculo cinzento das grandes profundezas, os seres gelatinosos e fosforescentes que nunca se viam, os calamares de vinte metros, com olhos de mais de um palmo de diâmetro, que resvalavam como zepelins no seio dos mares, os últimos verdadeiros monstros marinhos, cujo tamanho só era conhecido por fragmentos encontrados em estômagos de baleia. Que aconteceria, se uma onda apanhasse a canoa pelo lado e os fizesse virar? Quanto tempo durariam com vida? Bond tomou um pouco mais de cuidado com a direção da canoa e deixou aquele pensamento de lado.
Uma hora, duas horas, três, quatro. Quarrel acordou e estirou os membros. Chamou em voz baixa a atenção de Bond:
— Está cheirando a terra, chefe.
Pouco depois tornava-se mais densa a escuridão à frente. A sombra baixa foi tomando devagar a forma de um grande rato d’água nadando. Levantou-se por detrás deles uma lua de um pálido cor-de-rosa. Agora via-se distintamente a ilha, a mais ou menos três quilômetros de distância, e ouvia-se o ribombo longínquo da arrebentação.
Trocaram de lugar. Quarrel arriou a vela e puseram-se a remar. Por mais uma milha, pensou Bond, eles seriam invisíveis no meio das ondas. Nem mesmo o radar os poderia distinguir das cristas brancas. Na última milha é que eles teriam que andar depressa, já com a alvorada a alcançá-los.
Também ele, agora, podia sentir o cheiro de terra. Não era nenhum cheiro especial. Apenas algo diferente no nariz, após horas de mar limpo. Já se avistavam as franjas brancas da barra. O marulho persistia e as ondas iam rebentando com mais freqüência.
— Vamos, chefe — disse Quarrel. E Bond, com o suor já a lhe escorrer pelo queixo, afundava o remo mais e com maior freqüência. Céus! Isso era trabalho penoso! O desajeitado tronco de madeira que tinha corrido tão veloz com a vela parecia agora não sair do lugar! As ondas, na proa, não eram mais que uma leve ondulação. Os ombros de Bond pareciam em fogo, de tanta dor. O único joelho sobre o qual se apoiava estava começando a machucar-se. Suas mãos estavam crispadas em torno do remo, que parecia feito de chumbo.
Era incrível, mas eis que alcançavam a barra. Viam-se bancos de areia muito abaixo do barco. Agora, a arrebentação rugia. Seguiram ao longo da barra, em busca de uma brecha. Trinta metros dentro da barra, rompendo a linha arenosa da praia, tremeluzia uma água que corria para a terra. O rio! Portanto, o ponto de desembarque estava certo. A muralha de recifes interrompeu-se. Havia uma mancha de corrente escura, oleosa, passando por cima de bancos invisíveis de coral. A proa da canoa voltou-se para essa corrente e entrou nela. Houve um redemoinho de água e uma série de choques que raspavam o fundo da canoa, e de repente, uma avançada súbita para dentro da paz: a canoa estava deslizando devagar sobre águas tranqüilas como um espelho, em direção à praia.
Quarrel dirigiu a canoa para o abrigo de um promontório rochoso, na extremidade da praia. Bond estava intrigado ao notar que a praia não refletia um clarão branco, sob os fracos raios da lua. Compreendeu a razão daquilo, assim que pôs o pé na praia e começou a andar por ela com pernas endurecidas. A praia era negra. A areia era macia e agradável ao pisar, mas devia ter sido formada com rochas vulcânicas, esmagadas pelo trabalho dos séculos, e as marcas dos pés descalços de Bond naquela areia pareciam caranguejos brancos.