Apressaram-se. Quarrel tirou do barco três pedaços curtos de caule de bambu e deitou-os na praia lisa. Colocaram a proa da canoa no primeiro rolo e puxaram-na por cima dos outros. Depois que progrediam um palmo e meio, Bond apanhava o último rolo e ia colocá-lo na frente. A canoa moveu-se vagarosamente pela areia até ficar bem acima da última linha marcada pela maré, e por entre pedras, ervas e plantas de baixo porte. Empurraram-na mais dez metros, até o ponto em que começava o mangue. Ali chegados, cobriram-na com algas secas e pedaços de madeira que a maré deixara na praia. Quarrel cortou então folhas de palmeira-anã e foi cobrindo o rastro que tinham deixado, varrendo a areia e alisando-a.
Ainda estava escuro, mas o cinza do céu, a leste, em breve tomaria reflexos de pérola. Eram cinco horas. Estavam mortos de cansaço. Trocaram umas poucas palavras e Quarrel foi-se por entre as pedras do promontório. Bond afundou numa depressão já existente na areia fina e enxuta, numa moita de arbustos. Havia alguns siris nas vizinhanças. Apanhou quantos pôde e atirou-os no mangue. Em seguida, sem mais se preocupar com outros animais ou insetos que pudessem ser atraídos por seu cheiro e seu calor, deitou-se de comprido na areia e encostou a cabeça na mão.
Adormeceu imediatamente.
VIII - VÊNUS ELEGANTE
Bond despertou preguiçosamente. O toque da areia lembrou-lhe em que lugar se encontrava. Olhou para o relógio. Dez horas. O sol já estava quente, mesmo filtrando-se pelas folhas arredondadas das cocolobas. Uma sombra maior passou pela areia colorida, em frente de seu rosto. Seria Quarrel? Bond moveu a cabeça e espiou através do cortinado de folhas e de ervas que o escondiam da praia. Imobilizou-se.
Seu coração, primeiro, falhou, e logo depois pôs-se a bater tão desordenadamente que teve de respirar fundo a fim de acalmar as suas pulsações. Ao olhar por entre as tiras de ervas, seus olhos eram duas fendas pequenas.
Era uma jovem nua, que lhe dava as costas. Trazia à volta do corpo um largo cinturão de couro, que sustentava um facão de caça numa bainha, do lago direito. O cinto tornava a sua nudez extraordinariamente erótica. Ela estava a não mais de três metros de distância, na linha da maré alta, examinando qualquer coisa que segurava na mão. Estava na pose clássica do nu em repouso, com todo o peso do corpo descansando na perna direita, o joelho esquerdo levemente dobrado e voltado para dentro, a cabeça de lado, para examinar melhor o que tinha na mão.
Eram belas costas. A pele tinha um tom uniforme de café com leite muito claro, com o brilho de um cetim fosco, a curva suave da espinha estava bem acentuada, o que denunciava uma musculatura mais poderosa do que é comum nas mulheres, e as nádegas estavam quase tão firmes e arredondadas quanto as de um menino. Eram retas e bem feitas as pernas, e não se via nenhum tom de arroxeado por baixo do calcanhar levemente erguido. Não era uma moça de cor.
Seu cabelo era louro “cendré”. Tinha sido cortado pelo ombro e caia daqui e dali, em grossas mechas molhadas. Uma máscara verde de mergulhador estava levantada para trás, acima da testa, e a tira verde de borracha prendia seu cabelo na nuca.
A cena toda: a praia deserta, o mar verde e azul, a jovem nua de cabelos louros traziam a Bond alguma recordação. Procurou em sua mente. Sim, ora a Vênus de Botticelii, vista por trás.
Como tinha ela chegado até ali? Que estava fazendo? Bond olhou para baixo o, para cima, ao longo da praia. Via agora que a areia não era preta, mas cor de chocolate escuro. À direita, ele podia ver até a foz do rio, a uma distância talvez de duzentos metros. A praia estava deserta, sem vestígio de coisa alguma, a não ser uns pequenos objetos cor de rosa espalhados pela areia. Havia muitos deles — alguma espécie de conchas, pensou Bond — e tinham um efeito decorativo sobre o fundo marrom escuro. Ele olhou para a esquerda, onde, a uns sete metros de distância, começavam a aparecer as rochas do pequeno promontório. Sim, via-se cerca de meio-metro de sulco, na areia — o rastro de uma canoa que alguém puxara até o abrigo das pedras. Devia ter sido uma embarcação leve, sem o que não a poderia ter arrastado sozinha. Mas havia apenas um tipo de impressões de pés, indo das rochas até a beira-mar, e outras marcas, iguais, que subiam do mar até onde a moça se encontrava naquele momento. Viveria ela ali, ou teria também velejado desde Jamaica naquela mesma noite? Que coisa infernal, para uma garota! Fosse como fosse, que estaria ela fazendo ali?
Como que para responder às suas perguntas, a moça fez com a mão direita o gesto de atirar qualquer coisa, e uma dúzia daquelas conchas espalharam-se na areia à volta dela. Eram de um rosa arroxeado e pareceram a Bond iguais àquelas que ele tinha visto na praia. A jovem olhou para alguma coisa que tinha na mão esquerda e pôs-se a assobiar baixinho. Vibrava uma nota de triunfo em seu assobio. Estava assobiando a música de “Marion”, um pequeno calipso queixoso que já tinha sido liberado pela alfândega e se tornara famoso fora de Jamaica. Dizia:
Todo o dia, toda a noite, Marion,
Sentada à beira-mar, peneirando areia...
A moça interrompeu-se e estendeu os braços, bocejando com gosto. Bond sorriu. Umedeceu os lábios e prosseguiu com o estribilho:
Na água que brotava de seus olhos poderia flutuar um navio,
O cabelo que cresce em sua cabeça daria para amarrar uma cabra...
As mãos da desconhecida baixaram-se subitamente e cruzaram-se em seu peito. Os músculos das costas retesaram-se com o susto. Ela estava escutando, com a cabeça, ainda oculta pela cortina dos cabelos, inclinada para um lado.
Recomeçou a assobiar, com hesitação. O assobio fez-se trêmulo e morreu-lhe nos lábios. Assim que Bond começou a fazer eco, a jovem voltou-se num rodopio. Não cobriu a nudez com os dois gestos clássicos. Uma de suas mãos desceu rapidamente, mas a outra, em lugar de tentar esconder os seios, subiu até o rosto, cobrindo-o abaixo dos olhos, dilatados agora pelo terror.
— Quem é?
As palavras foram emitidas num ciciar aterrorizado.
Bond pôs-se em pé e saiu de baixo da coberta de folhas. Parou à beira das ervas. Mantinha as mãos abertas de lado, para mostrar-lhe que estavam vazias. Sorria encorajadoramente para ela.
— Sou eu, apenas. Outro que entrou sem licença do proprietário. Não tenha medo.
A moça abaixou a mão que ocultava o rosto e levou-a à faca que lhe pendia do cinturão. Bond observou os dedos, que se curvavam à volta do cabo. Olhou para o seu rosto. Compreendia agora porque sua mão instintivamente o cobrira. Era um lindo rosto, com profundos olhos azuis, bem separados, sob pestanas alouradas pelo sol. A boca era bem rasgada e os lábios deviam ser cheios, quando ela não os apertava como agora o fazia, sob a tensão nervosa. Era um rosto sério, e a linha do queixo denotava determinação — era o rosto de uma moça acostumada a tomar conta de si mesma. Certa vez, todavia, pensou Bond, ela não soubera defender-se, pois o nariz estava quebrado, esmagado, torto como o de um pugilista. Bond sentiu invadi-lo profunda revolta ao ver o que tinha acontecido a essa jovem extraordinariamente bela. Não era de admirar que seu pejo se concentrasse nesse rosto, e não nos seios firmes e bem modelados que se erguiam agora para ele sem disfarce.
Os olhos dela examinavam-no, encolerizados.
— Quem é o senhor? Que está fazendo aqui? Percebia-se a leve cadência do sotaque jamaicano. A voz era seca e de pessoa acostumada a ser obedecida.
— Sou inglês. Estou interessado em pássaros.
— Oh! — percebia-se dúvida na voz. A mão descansava ainda na faca. — Por quanto tempo o senhor esteve me observando? Como chegou até aqui?