Bond retrucou sensatamente:
— Honey, acontece que não existem neste mundo coisas como aquele dragão. Você viu algo muito parecido com um dragão. Eu estou querendo imaginar o que poderia ser.
— Como sabe que não existem dragões? — Agora, ele a enfurecera deveras. — Ninguém vive nesta parte da ilha. Um dragão poderia muito bem ter sobrevivido aqui. Afinal, o que pensa você que conhece a respeito de animais e coisas assim? Eu tenho vivido com cobras e outros bichos desde criança. Você já viu a fêmea do louva-deus comer o marido, depois do ato sexual? Viu alguma vez a dança do mangusto? Ou já viu um polvo dançar? Qual é o comprimento da língua de um beija-for? Você teve algum dia uma cobra domesticada que usava um guiso preso ao pescoço e o fazia tocar a fim de acordá-lo? Já viu um escorpião ter uma insolação e matar-se com o próprio ferrão? Já viu o tapete de fores que se estende no fundo do mar, à noite? Sabe que um corvo sente uma lagartixa morta a uma milha de distância?... — A jovem atirara essas perguntas como provocantes pontaços de espada. Parou, sem fôlego. Disse, desanimada: — Oh! você é um homem da cidade como todos os outros.
Bond retrucou:
— Honey, ouça. Você sabe essas coisas. Não tenho culpa de ter sempre vivido em cidades. Gostaria de conhecer as suas coisas, também. Acontece que eu não levei a mesma vida. Sei outras coisas, em lugar daquelas. Por exemplo... — Bond fez apelo à sua mente. Não podia lembrar-se de nada tão interessante quanto aquilo que ela lhe dissera. Concluiu, sem convicção:
— Sei, por exemplo, que aquele chinês vai tomar mais interesse em sua visita desta vez e vai tentar impedir a sua saída. — Fez uma pausa e acrescentou: — E a minha também...
Ela voltou-se e fitou-o com interesse.
— Oh... Por quê? Na verdade, pouco importa. É só a gente se esconder durante o dia e ir embora à noite. Ele já mandou cães atrás de mim, e até mesmo um avião. Ainda não me pegou.
Ela examinou Bond com redobrado interesse.
— É você que ele quer pegar?
— Bem — admitiu Bond — creio que sim. Você compreende, nós arriamos a vela duas milhas antes de chegarmos aqui, para que o radar dele não nos pudesse detectar. Penso que o chinês esperava uma visita minha. Já lhe devem ter falado de sua vela, e eu apostaria o que quisessem como ele julga que a sua canoa é a minha. É melhor que eu vá acordar meu amigo e nós três examinaremos a situação. Você vai gostar dele. É um habitante das ilhas Cayman, chamado Quarrel.
A jovem disse:
— Bem. Sinto muito se... — mas a sentença ficou inacabada. As desculpas eram difíceis para uma pessoa sempre na defensiva. — Mas, afinal de contas, eu não podia adivinhar, podia? — Ela perscrutou o seu rosto.
Bond sorriu para os interrogadores olhos azuis. Depois disse, tranqüilizando-a: — Naturalmente que você não podia. Foi uma questão de pouca sorte — má sorte também para você. Não acredito que ele dê muita importância a uma jovem solitária que coleciona conchas. Não tenha dúvidas de que eles examinaram as suas pegadas e encontraram pistas como aquela. — Bond estendeu a mão, mostrando as conchas espalhadas pela praia; depois, continuou: — Mas receio que ele tenha uma opinião diversa de mim. Com efeito, agora ele tentará apanhar-me com todos os recursos de que é capaz. Apenas receio que também a apanhe na mesma rede. De qualquer forma — Bond sorriu tranquilizadoramente — vamos ver o que Quarrel tem a dizer. Você deve ficar aqui.
Bond levantou-se e foi caminhando ao longo do promontório, olhando para todos os lados. Quarrel tinha-se escondido bem, pois passaram-se cinco minutos, antes que Bond o encontrasse. Estava deitado numa grande depressão do terreno, recoberta de ervas, entre duas grandes rochas. Estava ainda meio oculto por uma tábua escura que a maré tinha lançado à praia. Dormia pesadamente, com a cabeça descansando sobre o braço. Bond assobiou baixinho e sorriu quando os grandes olhos se arregalaram como os de um animal assustado. Quarrel olhou para Bond e pôs-se de pé rapidamente, quase com um sentimento de culpa. Em seguida esfregou suas grandes mãos no rosto, como se o estivesse lavando.
— Bom dia, capitão — disse. — Acho que dormi pesadamente e sonhei que aquela pequena chinesa vinha ter comigo.
Bond sorriu. — Tenho algo de diferente para você — disse ele. Sentaram-se, e Bond falou-lhe de Honeychile Rider e de suas conchas, assim como da complicação em que estavam metidos. — E, agora, são onze horas — acrescentou Bond. — Temos que fazer um novo plano.
Quarrel cocou a cabeça, olhando de soslaio para Bond. — O senhor não pensa em se descartar dessa jovem? — perguntou com esperança. — Ela nada tem a ver conosco... — Subitamente, calou-se. Sua cabeça deu uma volta e esticou-se como o focinho de um cão.
IX - POR UM TRIZ
Dez minutos mais tarde a baía estava vazia e imaculada. Pequenas ondas encrespavam-se preguiçosamente através do espelho das águas, no interior dos recifes e morriam exaustas na areia escura onde as conchas lilás brilhavam como unhas pintadas. O monte de conchas tinha desaparecido e não havia mais vestígios de pegadas. Quarrel cortara galhos de mangues e caminhava de costas procurando apagar as pegadas com aqueles galhos. Onde tinha varrido, a areia apresentava uma limpidez diferente mas não tão diferente a ponto de ser notada de fora do recife. A canoa da jovem tinha sido arrastada para dentro do mar, entre as rochas, e ali ficou coberta com algas e gravetos.
Quarrel tinha voltado ao promontório. Bond e a jovem estavam juntos, sob tufos de folhas, onde Bond dormira, e olhavam silenciosamente para o contorno do promontório, à volta do qual surgira a embarcação.
A lancha estava talvez a uns quinhentos metros de distância. A julgar pelo lento ritmo do motor, Bond concluiu que cada acidente da costa estava sendo cuidadosamente inspecionado para descobrir indícios da presença de estranhos. De qualquer forma, aquilo parecia uma possante embarcação. Talvez uma grande lancha de cabina. Que tripulação teria? Quem estaria no comando? O Dr. No? Improvável. Ele certamente não se daria àquele trabalho de polícia.
Do lado do ocidente apareceu um bando de corvos marinhos, voando baixo sobre o mar, além dos recifes. Bond observou-os. Eram o primeiro indício para ele encontrado daquela colônia de aves, na outra extremidade da ilha. Aquele bando, segundo Pleydell-Smith, seriam batedores à procura do brilho prateado das enchovas, próximas à superfície. Enquanto observava, as aves começaram a dar mergulhos rasos, ferindo o mar superficialmente e levantando respingos de água. Quase que de uma só vez, apareceu outra coluna de aves, vinda do ocidente, e logo outra, e mais outra, fundindo-se todas numa espessa e escura nuvem. Durante minutos, elas sombrearam o céu, e depois atiraram-se à água, cobrindo vários alqueires, piando e lutando, e mergulhando as cabeças no mar, fazendo uma rica colheita naquele sólido campo de anchovas, como piranhas que se banqueteassem num cavalo afogado.
Bond sentiu um suave toque da jovem, que fez um movimento com a cabeça, dizendo:
— As galinhas do chinês estão comendo milho.
Bond observou-lhe o rosto belo e feliz. Ela parecia bastante despreocupada com a chegada daqueles homens. Para ela aquilo era apenas o jogo de esconde-esconde que já tinha praticado antes.
A vibração metálica dos motores diesel estava-se tornando mais forte. A lancha deveria estar justamente por trás do promontório. Bond deu mais uma olhada à volta da tranqüila baía, e depois fixou os olhos através da folhagem e do mato, para os lados dos recifes.
A ponta de uma proa branca apareceu, seguida de uns dez metros de tombadilho, e logo o parabrisas de vidro, uma cabina baixa e uma antena de rádio, e o vulto de um homem à volta do leme. Finalmente, o comprido e achatado fosso da popa, e uma flâmula vermelha pendente, Seria uma lancha-torpedeira convertida, um excedente de guerra do governo britânico?