Inesperadamente, Bond encolheu-se. Uma bota de borracha tinha pisado em seu queixo e escorregado. O homem pensaria tratar-se de um galho de árvore? Bond não podia correr aquele risco. Com um só impulso pôs-se de pé, atirando para longe o pedaço de bambu.
Bond teve uma rápida impressão de um gigantesco corpo de pé, quase em cima de si, e duma coronha de rife, em rápido movimento. Levantou o braço esquerdo para proteger a cabeça e recebeu um violento golpe no braço. Ao mesmo tempo, o seu braço direito se esticou para a frente, e, quando o cano tocou no lado direito do peito, sob o mamilo, ele acionou o gatilho.
O coice da arma, quase encostada ao corpo do homem, por pouco não quebrou o pulso de Bond, mas o homem desabou para trás como uma árvore decepada que cai n’água. Antes que o corpo afundasse, Bond ainda pôde perceber-lhe uma grande fenda no flanco. A cabeça, uma cabeça negróide de chinês, veio à superfície, com os olhos revirados para cima e a água a sair de sua boca escancarada e silenciosa. Em seguida a cabeça submergiu novamente e nada mais se pôde ver senão uma lama espumosa e uma mancha vermelha que gradualmente se ia ampliando e lentamente era atraída pela corrente.
Bond se endireitou e voltou-se para o lado. Quarrel e a jovem estavam atrás, em pé, com a água a escorrer-lhes dos corpos. Quarrel tinha um sorriso que ia de orelha a orelha, mas a garota mordia as articulações dos dedos, enquanto seus olhos se escancaravam horrorizados diante da água avermelhada.
Bond disse laconicamente: “Desculpe-me, Honey. Tinha que ser feito. Ele estava bem sobre nós. Venha, vamos indo.” Agarrou-a de qualquer maneira, pelo braço, e arrastou-a para fora da principal corrente, apenas detendo-se quando chegaram a rio aberto, na boca do túnel de mangues.
O cenário estava novamente vazio. Bond olhou para o relógio, e verificou que parara às três horas. Olhou para o sol, já bastante deslocado para o ocidente e concluiu que deveriam ser quatro horas. Quanto ainda teriam que caminhar? Bond inesperadamente sentiu-se cansado. Agora teria de enfrentar a situação. Ainda que o disparo não tivesse sido ouvido — e certamente que ele fora abafado pelo próprio corpo da vítima e pelas árvores — a falta do homem seria sentida quando os outros se reunissem, — se a suposição de Quarrel fosse correta, na embocadura do rio, de onde seriam recolhidos pela lancha. Voltariam eles, subindo o rio, a fim de procurarem o desaparecido? Talvez não. Já estaria muito escuro quando eles tivessem a certeza de que o homem estava realmente desaparecido. O mais certo seria mandarem um grupo de homens pela manhã. Os cães facilmente dariam com o corpo. E o que aconteceria?
A garota puxou-o pela manga e disse com irritação: — Já é tempo de você me dizer o que significa tudo isto! Por que estão todos procurando se matar mutuamente? E quem é você? Não acredito em toda essa história de aves. Ninguém carrega revólveres contra aves.
Bond baixou o olhar, fitando aqueles olhos bem separados e irados. — Desculpe-me, Honey. Receio tê-la arrastado para uma boa encrenca. Eu lhe contarei tudo quando voltarmos à noite para o acampamento. Foi apenas má sorte que você se envolvesse comigo, desta maneira. Tenho uma guerrinha com essa gente. Eles parecem querer matar-me. Agora estou apenas interessado em que todos nós saiamos desta ilha sem que ninguém fique ferido. Já tenho muito do que queria, para da próxima vez voltar pela porta da frente.
— O que você quer dizer? Você é alguma espécie de policial? Está querendo meter esse chinês na cadeia?
— Mais ou menos, — disse Bond, rindo para ela. — Pelo menos você está do lado dos anjos. Agora, diga-me uma coisa. Quanto falta ainda para chegar ao acampamento dos guardas?
— Oh, cerca de uma hora.
— É um lugar bom para nele esconder-se? Eles poderiam achar-nos com facilidade?
— Eles teriam que atravessar o lago ou subir o rio. Tudo estará muito bem se eles não puserem o dragão em nosso encalço. Ele pode muito bem atravessar a água, pois já o vi fazê-lo.
— Bem — disse Bond diplomaticamente — esperemos que ele esteja com a cauda machucada, ou tenha outra coisa qualquer.
A jovem vociferou: — Muito bem, sr. Sabe-Tudo. — E acrescentou irritada: — Espere e verá.
Quarrel deixou o túnel de mangues, agitando ruidosamente a água, tendo na mão o rife do chinês abatido, e dizendo à guisa de quem pede desculpas:
— Não há mal em termos outra arma, chefe. Parece que vamos precisar dela.
Bond apanhou aquela arma. Era uma carabina “Remington”, do exército norte-americano, calibre 300. Não havia dúvida de que aquela gente contava com equipamento apropriado. Bond devolveu a arma a Quarrel, depois de examiná-la.
Quarrel como que fez eco aos seus pensamentos: — Isso é gente astuta, capitão. Aquele homem veio esquadrinhando suavemente, atrás dos outros, a fim de nos surpreender quando deixássemos o esconderijo, depois da passagem dos cães. Esse tal de doutor com certeza é um sujeito muito esperto.
Bond disse pensativamente: — É, ele deve ser um homem incomum. — Depois espantou os pensamentos: — Agora, vamos tocando para a frente. Honey diz que ainda precisamos de uma hora para chegarmos ao acampamento. É melhor irmos pela margem esquerda, de modo a ficarmos ao abrigo da colina. Pelo que já pudemos ver, eles têm lunetas assestadas sobre o rio.
Bond entregou a sua arma a Quarrel, que a guardou na mochila molhada. Puseram-se novamente em marcha, com Quarrel à frente, e Bond e a jovem andando juntos, atrás.
Aproveitavam algumas sombras das árvores e bambus da margem ocidental, mas deviam agora suportar toda a intensidade de um vento crestante. Borrifaram braços e corpos com água, a fim de refrescar as queimaduras. Os olhos de Bond estavam injetados por aquele insuportável revérbero e o seu braço doía intoleràvelmente no ponto em que fora atingido pela coronha. E ele não teria à sua espera o seu jantar de pão embebido, queijo e fiambre. Quanto tempo poderiam dormir? Não dormira muito na véspera, e parece que não iria ter melhor ração de sono. E a garota? Ela nada dormira. Ele e Quarrel teriam que se revezar, em quartos de vigilância. E logo chegaria o dia seguinte, quando procurariam ganhar novamente os mangues e vencer lentamente a distância que os separava de sua canoa, através da extremidade oriental da ilha. As coisas correriam daquela forma, segundo era de esperar. Então, tratariam de se fazerem ao mar na noite seguinte. Bond pensou em como haveria de abrir caminho por entre sólidos mangues, na distância de oito quilômetros. Que perspectiva! Continuou se arrastando para a frente, pensando nas “férias ao sol dos trópicos” de M. Muito gostaria que M tivesse que partilhar com ele aquelas “férias”.
O rio foi-se estreitando até que se reduziu a uma simples corrente entre as moitas de bambu. Depois se ampliava num estuário baixo e pantanoso, além do qual as cinco milhas quadradas de lago raso davam vazão para o outro lado da ilha, perdendo-se num agitado espelho líquido azul-cinza. Mais para além estava a brilhante pista aérea e o reflexo da luz solar sobre um único hangar. A jovem disse-lhe que se mantivesse na direção leste, e eles foram lentamente avançando, protegidos pela orla da mata.
Inesperadamente, Quarrel deteve-se, com o rosto esticado como o focinho de um cão para o terreno pantanoso à sua frente. Dois profundos sulcos tinham sido escavados na lama, com um sulco mais raso no centro. Eram a trilha de algo que tinha descido da colina e atravessado o pântano em direção ao lago.
A jovem disse com indiferença: — Por aqui já passou o dragão.
Quarrel arregalou os olhos para ela.
Bond caminhou lentamente pela trilha. As marcas exteriores eram bastante lisas, trazendo a marca de uma linha curva. Poderiam ter sido causadas por rodas, mas eram enormes, pelo menos com sessenta centímetros de largura. A trilha central tinha a mesma forma, mas com apenas três polegadas de largura, ou seja a largura de um pneumático de automóvel. As trilhas não apresentavam nenhum indício de pegadas e eram completamente frescas. Estendiam-se em linha reta, e os arbustos por elas atravessados tinham sido derrubados e esmagados no chão, como se um tanque de guerra tivesse passado por ali. Bond não podia imaginar que espécie de veículo seria aquele. A jovem tocou-o com o cotovelo e murmurou: — Eu lhe tinha dito. Ele apenas pôde responder pensativamente: — Bom, Honey, se não é o dragão, é algo que nunca vi antes.