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Bond barbeou-se e tomou um banho de chuveiro. Sentia-se desesperadamente sonolento. O sono chegava-lhe, de modo que de quando em quando tinha que interromper o que fazia e inclinar a cabeça, repousando-a entre os joelhos. Quando começou a escovar os dentes, o seu estado era tal que mal podia fazê-lo. Estava começando a reconhecer os sintomas. Tinha sido narcotizado. A coisa teria sido posta no suco de abacaxi ou no café? Este era um detalhe sem importância. Aliás, nada tinha importância. Tudo o que queria fazer era estender-se naquele chão de ladrilhos e fechar os olhos. Assim mesmo, dirigiu-se cambaleante para a porta, esquecendo-se de que estava nu. Isso também pouca importância tinha. A jovem já tinha terminado a refeição e agora estava na cama. Continuou trôpego, até ela, segurando-se nos móveis. O quimono tinha sido abandonado no chão e ela dormia pesadamente, completamente nua, sob um simples lençol.

Bond olhou para o travesseiro, ao lado da jovem. Não! Procurou o interruptor e apagou as luzes. Agora teve que se arrastar pelo chão até chegar ao seu quarto. Chegou até junto de sua cama e atirou-se nela. Com grande esforço conseguiu ainda esticar o braço, tocar o interruptor e tentar apagar a lâmpada do criado-mudo. Mas não o conseguiu: sua mão deslizou, atirou o abajur ao chão e a lâmpada espatifou-se. Com um derradeiro esforço, Bond virou-se ainda no leito e adormeceu profundamente.

Os números luminosos do relógio elétrico, no quarto de casal, anunciavam nove e meia.

Às dez horas, a porta do quarto abriu-se suavemente. Um vulto muito alto e magro destacava-se na luz do corredor. Era um homem. Talvez tivesse dois metros de altura. Permaneceu no limiar da porta, com os braços cruzados, ouvindo. Dando-se por satisfeito, caminhou vagarosamente pelo quarto e aproximou-se da cama. Conhecia perfeitamente o caminho. Curvou-se sobre o leito e ouviu a serena respiração da jovem. Depois de um momento, tocou em seu próprio peito e acionou um interruptor. Imediatamente um amplo feixe de luz difusa projetou-se na cama. O farolete estava preso ao corpo do homem por meio de um cinto que o fixava à altura do esterno.

Inclinou-se novamente para a frente, de modo que a luz clareou o rosto da jovem.

O intruso examinou aquele rosto durante alguns minutos. Uma de suas mãos avançou, apanhou a orla do lençol, à altura do queixo da jovem, e puxou-o lentamente até os pés da cama. Mas a mão que puxara aquele lençol não era u’a mão. Era um par de pinças de aço muito bem articuladas na extremidade de uma espécie de talo metálico que desaparecia dentro de uma manga de seda negra. Era u’a mão mecânica.

O homem contemplou durante longo tempo aquele corpo nu, deslocando o seu peito de um lado para outro, de modo que todo o leito fosse submetido ao feixe luminoso. Depois, a garra saiu novamente de sob aquela manga e delicadamente levantou a ponta do lençol, puxando-o dos pés da cama até recobrir todo o corpo da jovem. O homem demorou-se ainda por um momento a contemplar o rosto adormecido, depois apagou o farolete e atravessou silenciosamente o quarto em direção à porta aberta, além da qual estava Bond dormindo.

O homem demorou-se mais tempo ao lado do leito de Bond. Perscrutou cada linha, cada sombra do rosto moreno e quase cruel que jazia quase sem vida, sobre o travesseiro. Observou a circulação à altura do pescoço e contou-lhe as batidas; depois, quando puxou o lençol para baixo, fez o mesmo na área do coração. Estudou a curva dos músculos, nos braços de Bond e nas coxas, e considerou pensativo a força oculta no ventre musculoso de Bond. Chegou até mesmo a curvar-se sobre a mão direita de Bond, estudando-lhe cuidadosamente as linhas da vida e do destino.

Por fim, com grande cuidado, a pinça de aço puxou novamente o lençol, desta vez para cobrir o corpo de Bond até o pescoço. Por mais um minuto o elevado vulto permaneceu ao lado do homem adormecido, depois se retirou rapidamente, ganhando o corredor, enquanto a porta se fechava com um estalido metálico e seco.

XIV - ENCONTRO COM O DR. NO

O relógio elétrico, no salão escuro e fresco, enterrado no coração da montanha, mostrava que eram quatro horas e trinta minutos.

Do lado de fora da montanha, Crab Key tinha transpirado mais um dia e mais um dia de mau cheiro tinha passado. Na extremidade oriental da ilha, os bandos de aves, dentre as quais se destacavam as garças da Luisiânia, os pelicanos, narcejas, pequenas garças, flamingos e espátulas, continuavam construindo os seus ninhos ou pescando nas águas rasas do lago. A maior parte das aves tinha sido tão incomodada durante aquele ano, que não tentaria mais construir os seus ninhos. Nos últimos meses eles tinham sido atacados a intervalos regulares pelo monstro que aparecia durante a noite para destruir os seus ninhos e abrigos. Este ano, muitas daquelas aves não teriam cria. Haveria ainda algumas tentativas migratórias e muitas aves morreriam em conseqüência da histeria nervosa que se apodera das colônias de aves quando não podem mais ter paz e isolamento.

Na outra extremidade da ilha, no campo de guano que dava à colina a sua aparência de cimo encoberto pela neve, o enorme bando de corvos marinhos tinha passado mais um dia empanturrando-se com peixe e pagando, em troca, o seu dízimo de trinta e três gramas de precioso adubo ao seu senhor e protetor. Nada tinha interferido com a sua estação de procriação. Agora eles estavam ruidosamente ocupados com as pilhas de gravetos sujos que iriam servir de material para a construção de seus ninhos — com cada pilha disposta a sessenta centímetros da mais próxima, pois os corvos marinhos são aves muito briguentas e esta é a distância mínima capaz de assegurar a paz na colônia. Em breve as fêmeas estariam pondo os três ovos, dos quais a população avícola de seu senhor seria acrescida de pelo menos dois filhotes.

Abaixo do pico, onde tinha sido iniciada a escavação, uma centena mais ou menos de negros e mulheres, que constituiriam a força de trabalho operacional, estava-se aproximando de seu período de trabalho diurno. Outros cinco metros cúbicos de guano tinham sido escavados no flanco da montanha, e mais vinte metros de terraplenagem tinham sido acrescentados ao nível da extração. Mais abaixo, o flanco da montanha parecia recoberto de terraços de vinhas, como na Itália setentrional, embora aqui não existam vinhas, mas apenas profundos terraços escavados no flanco da montanha. E aqui, ao invés do mau cheiro do gás dos pântanos, que se estendia a toda a ilha, havia um forte cheiro de amoníaco, e o terrível vento quente que mantinha as escavações secas soprava aquela poeira marrom esbranquiçada, recentemente extraída, para os olhos, orelhas e narizes dos sapadores. Mas os trabalhadores estavam acostumados com aquele cheiro e com aquela poeira, e assim o trabalho era considerado fácil e saudável. Não tinham queixas.

A última vagoneta de ferro pôs-se em movimento sobre os trilhos “Decauville” que desciam da montanha em direção à instalação de moagem e separação. Ouviu-se um apito e os trabalhadores puseram as picaretas no ombro e começaram a descer vagarosamente em direção aos barracões pré-fabricados, que constituíam os seus alojamentos.

No dia seguinte, do outro lado da montanha, o navio, que mensalmente aportava àquelas paragens, aproximar-se-ia do cais de águas profundas, que aqueles mesmos trabalhadores tinham ajudado a construir, há dez anos, mas que desde então jamais tinham visto. A chegada daquele navio significava sempre o recebimento de abastecimentos frescos, novas mercadorias e bijuterias na cantina dos trabalhadores. Seria também um feriado. Haveria dança, rum e algumas brigas. A vida era boa.

A vida era boa também para os chefes da turma exterior — todos chineses negros como os agentes que tinham dado caça a Bond, a Quarrel e à jovem. Eles também interrompiam o seu trabalho na garagem, nas oficinas e nos postos de vigia, passando-se para os recintos dos “oficiais”. A não ser certas tarefas de vigilância e certas necessidades de carregamento, o dia seguinte seria um feriado para a maioria daqueles homens. Teriam também as suas bebidas, suas danças e mais uma batelada mensal de garotas “de dentro”. Alguns “casamentos” no último lote continuariam por mais alguns meses ou semanas, conforme o gosto dos “maridos”, mas para os outros haveria uma nova oferta. Encontrar-se-iam ainda algumas das jovens mais velhas, que já tinham tido os seus filhos na creche, e estavam voltando para uma nova temporada de trabalho “fora”, assim como uma ou outra jovem que tinha acabado de chegar à maturidade sexual e que “vinha para fora” pela primeira vez. Com relação a estas últimas, verificar-se-iam algumas lutas, e possivelmente algum sangue seria derramado, mas, por fim, o recinto dos “oficiais” se aquietaria durante mais um período de um mês, retomando a sua vida comunal, com cada “oficial” dispondo de uma mulher para satisfazer as suas necessidades.