No âmago do coração fresco da montanha, muito abaixo da vida disciplinada que se desenrolava na superfície, Bond despertou em sua confortável cama. A luz no quarto da garota estava acesa e ele podia ouvir que ela estava andando. Bond atirou os pés para o chão e, evitando os fragmentos de vidro provenientes da lâmpada quebrada, dirigiu-se silenciosamente para o armário das roupas e vestiu o primeiro quimono que lhe caiu nas mãos. Depois, foi até a porta. Honey tinha posto uma pilha de quimonos sobre a cama e estava experimentando um por um diante do espelho. Naquele momento ela vestia um muito elegante, de seda azul-celeste, que parecia maravilhoso naquele fundo dourado que era a sua pele. Bond disse-lhe: — Este está bem.
Ela deu meia volta e levou a mão à boca. Em seguida baixou-a e disse: — Ah, era você! — Sorriu para ele: — Pensei que você nunca mais acordasse. Fui olhá-lo várias vezes e já tinha decidido acordá-lo às cinco horas. São quatro e meia e eu estou esfaimada. Você poderá pedir alguma coisa para nós?
— Sem dúvida. — Bond aproximou-se de sua cama. Ao passar por ela, enlaçou-a com o braço e arrastou-a consigo. Examinou os botões das campainhas e apertou o que tinha a tabuleta: “Sala de serviço”. Depois acrescentou: — E quando aos outros? Por que não havemos de receber cuidados completos?
Ela riu com galhofa: — Mas o que é uma manicura?
— Alguém que trata de suas unhas. Devemos apresentar a nossa melhor aparência ao Dr. No. — No fundo da mente de Bond estava a preocupação de se apossar de alguma espécie de arma — um par de tesouras seria melhor do que nada. Qualquer coisa serviria.
Apertou mais dois botões. Em seguida deixou-a desprender-se de seus braços e correu os olhos pelo quarto. Alguém tinha entrado enquanto dormiam e retirara o serviço do desjejum. Havia um bandeja de bebidas, num aparador, junto à parede. Bond aproximou-se daquela peça e examinou-a. Tinha de tudo. Entre as garrafas estavam dois cardápios. Aqueles cardápios poderiam ter saído do restaurante do Savoy, de “21” ou do “Tour d’Argent”. Bond percorreu com os olhos uma daquelas listas. Começava com ‘”Caviar double de Beluga” e terminava com “Sorbet au Champagne”. Entre aqueles dois fechos de prata e ouro estavam todos os pratos cujos elementos constitutivos não eram afetados pelo processo de rápido congelamento. Bond lançou-o novamente sobre a bandeja. Certamente que não se poderia reclamar a qualidade do queijo utilizado na armadilha!
Ouviu-se uma batida na porta e a sofisticada May entrou, seguida por outras duas belas jovens chinesas. Bond dispensou bruscamente as suas amabilidades, pediu chá e torradas com manteiga para Honeychile e disse-lhes que tratassem das unhas e dos cabelos da jovem. Depois foi ao banheiro, tomou duas aspirinas e um banho frio de chuveiro. Tornou a vestir o quimono, julgou-se com uma aparência de idiota e voltou para o quarto. May, sorridente, perguntou-lhe se queria escolher o que gostaria de ter no jantar para si e para a sra. Bryce. Sem entusiasmo, Bond pediu caviar, costeletas grelhadas de carneiro e salada e ostras com toucinho frito. Quando Honeychile se recusou a fazer sugestões, escolheu para ela melão, frango assado à inglesa e sorvete de vanilina com creme de chocolate.
May fez o seu sorriso de covinhas, que significava entusiasmo e aprovação. — O Doutor pergunta se sete horas e quarenta e cinco minutos será uma hora conveniente — disse.
Bond aquiesceu laconicamente.
— Muito obrigada, sr. Bryce. Virei chamá-lo às sete e quarenta e quatro.
Bond encaminhou-se para onde Honeychile estava sendo atendida, na penteadeira, e ficou observando os operosos e delicados dedos ocupados em tratar dos cabelos e das unhas da jovem. Ela sorriu para ele excitadamente, pelo espelho. Ele disse com mau humor: — Não permita que elas a deixem muito parecida com uma macaca. — Depois encaminhou-se para a bandeja de bebidas. Serviu-se de um forte Bourbon com soda e levou o copo para o seu quarto. Sua intenção de se apoderar de uma arma ainda não se concretizara. As limas e tesouras estavam presas por uma corrente à cintura da manicura, da mesma forma que a tesoura da penteadora. Bond sentou-se em sua cama desfeita e absorveu-se em sombrias reflexões.
As mulheres se retiraram. A jovem olhou-o, mas quando sentiu que ele não levantaria a cabeça, voltou para o seu quarto e o deixou sozinho. Depois de algum tempo, entretanto, Bond entrou no quarto dela para apanhar mais um copo de bebida. Disse negligentemente: — Honey, você está maravilhosa! — Depois, olhou para o relógio da parede e voltou para beber mais um copo e pôr mais um daqueles ridículos quimonos, desta vez um todo negro.
Passados alguns minutos ouviu-se novamente a delicada batida na porta e os dois deixaram silenciosamente o quarto, ganhando o corredor. May parou diante do elevador, cujas portas tinham sido mantidas abertas por outra chinesa atenciosa. Ambos entraram e as portas se fecharam. Bond observou que aquele elevador era da marca “Waygood Otis”. Com efeito, tudo naquela prisão era luxuoso. Bond teve um estremecimento de desgosto. A reação da jovem não lhe passou despercebida, e voltando-se para ela disse: — Desculpe-me, Honey; estou com um pouco de dor de cabeça. — Não quis confessar-lhe que toda aquela luxuosa encenação estava começando a dar-lhe nos nervos; que não tinha a mínima idéia do que tudo aquilo poderia representar; que sabia que aquilo só poderia ser um mau augúrio; e que, finalmente, não tinha uma sombra de plano capaz de tirá-los daquela situação. E isso era o pior. Com efeito, nada deixava Bond mais deprimido do que saber que não tinha podido arquitetar a mínima linha de ataque ou defesa.
A jovem se aproximou dele, e disse: — Desculpe-me, James. Espero que isso passe. Você não está zangado comigo por alguma coisa?
Bond conseguiu esboçar um sorriso e responder: — Não; querida. Estou apenas aborrecido comigo mesmo. — Depois, abaixando a voz: — Agora, a respeito desta noite: deixe a falação comigo. Seja natural e não se preocupe com o Dr. No. Ele pode ser meio louco.
Ela fez um sinal de solene aquiescência: — Farei tudo o que puder.
O elevador parou, sem que Bond tivesse a mínima idéia da distância que tinham percorrido — talvez cem pés, talvez duzentos? As portas automáticas se abriram e Bond, juntamente com a jovem, saiu para uma ampla sala.
A peça estava vazia. Tinha um teto muito alto, cerca de sessenta pés de comprimento, e três das paredes cobertas por prateleiras de livros até o teto. A um primeiro olhar, a quarta parede parecia feita de vidro azul muito escuro. A sala parecia ser uma combinação de estúdio e biblioteca. Havia ainda a um canto um grande mesa coberta de papéis em desordem, e uma mesa central com revistas e jornais. Espalhadas em vários pontos, encontravam-se também confortáveis poltronas, como se vêem nos clubes, forradas de couro vermelho. O tapete era verde escuro, e a iluminação, de lâmpadas comuns, era velada. A única particularidade estranha estava na bandeja de bebidas e no aparador lateral, que estavam encostados no meio da longa parede de vidro, enquanto cadeiras e mesas avulsas, com cinzeiros, estavam dispostas em semicírculo à volta dela, de modo que a sala parecia ter como centro aquela parede vazia.